julho 24, 2009

Reflexões IV

"- Acho que as fés se perdem sempre que os diques da alma já não podem aguentar a força das dúvidas. Por isso as igrejas fazem o possível para que não haja dúvidas, nem gostam de quem as tenha. Para as igrejas, os melhores são os estúpidos ou aquelas formas de fanatismo que se confundem com a estupidez. Os estúpidos são muito queridos nas igrejas e conseguem até ocupar altos postos dirigentes. São pessoas que não duvidam. Outros são os burocratas e os homens do aparelho porque, para eles, perder a fé é perder o pão de cada dia ou a própria imagem porque, tudo o que são na vida, foi conseguido por ali. Os velhos também dão jeito porque já não são capazes de mudar. (...) A gente demora muito tempo a admitir que o destino do homem está fora das ideologias e que as coisas importantes acabam por ser vividas connosco ou, quando muito, na pequena roda dos nossos afectos."
In O Riso de Deus, Alçada Baptista

Reflexões III

"Chamava-se Willy Muenzenberg e era o chefe da propaganda do Komitern para o Ocidente. (...)
A verdadeira história não é a história do poder e muito menos a história das ideias: é a história dos mecanismos de manipulação dos sentimentos que estão mais activos numa determinada época, de modo a integrarem-se e influenciarem 'o espírito do tempo'. Logo que o 'espírito do tempo' se instala na história, é assim uma espécie de epidemia: tal como a gripe que pega o doente e o são, o 'espírito do tempo' pega o inteligente e o estúpido. É fácil de ver que o marxismo, como filosofia, como teoria de pensamento, é de uma pobreza total, é uma filosofia para principiantes, no entanto, contaminou os mais brilhantes espíritos do meu tempo. (...)
Ele (Willy) tinha conseguido aproveitar e dar corpo a duas fontes de energia que vogavam perdidas no Ocidente: a culpabilidade dos filhos da burguesia que não conseguiam digerir os seus privilégios e o ressentimento plurigeracional do proletariado. Era preciso pôr essas energias em movimento dando à burguesia incomodada uma possibilidade de se redimir, encorajando na cabeça e no coração da classe operária essa inveja justiceira. (...)
Num mundo em que as velhas crenças tinham ruído, as igrejas estavam em crise e era preciso propor, não tanto novas formas de inteligência, mas novas formas de fé. O seu mecanismo de acção tinha que ser assim: primeiro, criar uma nova verdade para um mundo inteiramente descrente. (...) Portanto, primeiro ponto, a exploração da insegurança do mundo fornecendo-lhe uma verdade indiscutível. Foi uma operação subtil porque era necessário desacreditar as palavras que até então tinham feito apelo à nossa relação com os outros e arranjar outras que as substituíssem. (...) A mais evidente foi a substituição da palavra 'caridade' por 'solidariedade'. A palavra 'caridade', 'obras de caridade', estava de tal modo comprometida que nenhum de nós se atrevia a pensar que, desde a Idade Média, tinha sido o único lugar de refúgio e acolhimento dos que tinham fome de pão e até sede de justiça. Mas a 'solidariedade' era exactamente a mesma coisa. Era uma caixa de 'esmolas' que passaram a chamar-se 'contribuições'. (...)
O segundo passo era o mecanismo gerador de culpa e a oferta pronta da redenção. O mundo capitalista não nos levava ao inferno: era o próprio inferno, como o mundo socialista era o próprio céu. A burguesia não desgostava disto porque, por enquanto nada perdia e, com a sua contribuição, ia assegurando um lugar no céu que se aproximava. Repara: o mecanismo da verbalização dispensava-a dos comportamentos: eles podiam continuar a fazer a mesma vida, agora cheios de boa consciência, e a passagem do inferno para o paraíso não era cara: o que davam ao padre passavam a dar ao Socorro Vermelho. (...)
Eu disse ao Bernardo que aquilo que me fazia mais impressão eram os intelectuais. Como é que a maior parte dos homens inteligentes da geração que recebi eram pelos menos, companheiros de jornada. Ele sorriu da minha ingenuidade:
- Nós temos uma ideia muito falsa daquilo que chamam a 'classe intelectual'. (...) De toda essa multidão de intelectuais e artistas, em cada geração, há dois ou três que se libertam da história contemporânea e são capazes de descobrir os meandros da condição humana ou os novos rumos do mundo. (...) Vê, no nosso tempo, o que disse mais coisas, foi inteiramente desconhecido dos seus contemporâneos: o Fernando Pessoa, que andava a equilibrar a sua neurose entre os copos e os seus versos com a total indiferença das pessoas do seu tempo, pois poucos se deram conta de que ele estava a ajudar a descobrir o homem e a desenhar o futuro. (...) Como a maioria das pessoas não sabe juntar duas letras e vivemos todos mergulhados numa civilização material, eles têm pelos intelectuais uma admiração imediata, quase um temor reverencial e um convencimento generalizado de que eles estão na vida do espírito enquanto os simples mortais andam à volta com os seus interesses. E então, há uma receptividade especial, uma consideração imediata por esse mundo das letras e das artes com o qual se redimem aqueles que se julgam só entregues ao mundo da matéria. Willy dava-lhes a maior importância: os escritores, os artistas, os jornalistas. Sabia que seriam eles os novos arautos das suas ideias e que eles iriam pregar a redenção. De resto, esta foi a ideia de Lenine.
O Bernardo tinha a teoria de que foi no ano de 1921 que se revelou a Lenine a estratégia de exploração dos traumas da burguesia (...) e pensou que seriam os escritores os interlocutores e propagandistas indicados para essa operação. Foi quando pediu a Gorky que, como escritor, fizesse um apelo a Herbert Houver, então Secretário do Comércio americano e responsável pela American Relief Administration, pedindo-lhe ajuda contra a fome que atingia 25 milhões de pessoas. O pedido do escritor - o tal temor reverencial dos ignorantes perante a cultura é outro filão a explorar - revelou-se duma rentabilidade inesperada. (...) O seu valor propagandístico e a sua função de recepção e suporte da imensa má consciência da burguesia ocidental incomodada era incalculável. Willy queria comprometer, material e emocionalmente, as pessoas numa causa épica e envolvente, sabendo que o 'sacrifício' robustece o vínculo que com ela se cria. Willy proporcionou ao Ocidente culpabilizado a instituição que lhe daria a redenção e o perdão. "
In: O Riso de Deus, António Alçada Baptista

julho 15, 2009

Reflexões II

"Voltei-me para o André e perguntei-lhe:
- Será que a liberdade é, para ti, um valor?
O André hesitou. Pensou talvez nos tempos em que eu andava por aí a combater a ditadura e ele, imperturbável, a tratar do seu escritório com o Martim, vai-não-vai para a guerra colonial. Mas disse:
- É. Acho que é. (...)
Noutro dia o Lemos dizia-me, no tempo em que os comunistas falavam, que era um homem livre porque tinha sido livre a escolher o comunismo e livre a praticá-lo. Eu disse-lhe: 'Não. Livre, livre era o Staline, porque era ele e não tu quem fazia as normas do Partido.' Eu acho que a maioria das pessoas tem uma noção de liberdade parecida com a do Lemos. Por mais estranho que pareça, homens livres, para quem a liberdade é efectivamente um valor, são os que estão presos por causa da liberdade dos outros.
O Tomaz perguntou, interessado:
- E os outros, Francisco? E os outros? Como é que tu sentes que a tua salvação passa pelos outros?
- Não sei bem. Enquanto não souber, amando-os, respeitando a sua liberdade. Recuso é aquela dos pobrezinhos. Acho que o chamado progressismo cristão é um exemplo claro da crise da relação com a transcendência. Descobri a certa altura que os cristãos progressistas, independentemente do fascínio pelo poder, que nunca agradou a Cristo, tinham uma concepção estranha da vida, como se a salvação do mundo se concretizasse num imenso panelão de sopa, de preferência à porta de uma igreja, e eles, de avental de riscado, todos contentes, a deitarem uma concha de sopa em cada prato, duma fila do tamanho da população do mundo...Eles não repararam que, como os calvinistas com o dinheiro e o trabalho, estavam a fazer da pobreza dos outros um absoluto, um meio de salvação. Ora a pobreza dos outros não é um absoluto, é um absurdo: temos é que saber como se comunica com Deus num mundo sem pobreza.
O Tomaz insistia: - Mas os que sofrem, os que têm fome?
- Para ajudar os que sofrem e os que têm fome não é necessária uma religião. A fome e a violência são absurdos de tal modo estampados na cara do mundo que, quem a isso não é sensível, é porque não se chegou a integrar na espécie humana."
in "O Riso de Deus", António Alçada Baptista

Reflexões

"...o que o Tomás disse é capaz de ser o problema do nosso tempo: como comunicar com a transcendência?
O Tomás adiantou:
- Mas esse é o fundamento da religião...
-É. Mas uma religião é ainda uma cultura. Não podemos deslocar a religião dos limites e das atribulações de uma cultura. As religiões estão no processo da unidade...
- Então como é que tu comunicas com a transcendência? - perguntou o Tomaz.
- Para te dizer a verdade, infelizmente, não sei como comunicar com a transcendência. Sei é que me deram um Deus que era a fonte de todas as certezas e que agora, para mim, é o núcleo de todos os mistérios, de todos os enigmas e, por isso, de todas as minhas dúvidas e inquietações. Mas é possível que eu esteja ainda na tal via intelectual: a minha inteligência e a minha razão são ainda intrusos neste processo e o pior é que não me apetece nada ficar sem elas. Mas acho que há o êxtase: um desprendimento e um despojamento de nós porque nos encantámos com o mundo (...) e que isso nos leva a um irresistível enternecimento pela condição humana. Deve ser isso o êxtase, (...) o deixar sair de nós o melhor que temos e que nem julgávamos ter."
in "O Riso de Deus", António Alçada Baptista

julho 14, 2009

Alçada Baptista

1. "Porque nós não nos pomos no lugar do outro: temos é que descobrir o que o outro acorda em nós."
2. "Possivelmente, porque a maneira como vivemos o amor, contém nela a sua própria morte."
in "O Riso de Deus"

julho 02, 2009

O dedo no vidro do tempo




O dedo no vidro do tempo a pedir que o calor da tua boca continue a alimentar as palavras gravadas num instantâneo que cai do céu como uma promessa.