"Sou uma estrela, dizem. E acho que é verdade: sou uma estrela, sim -ardo! Depois virá uma explosão e morrerei. Na minha morte arrastarei comigo, para dentro do meu próprio abismo, tudo o que me rodeia, inclusive a luz. A luz inteira. Por enquanto sou uma estrela. Acontece-me, quando estou quase a adormecer, naquele território de fronteira em que ainda sabemos quem somos, ou julgamos saber, mas em que já não conseguimos abrir os olhos, acontece-me sonhar que voltei a ser uma pessoa, e torno a experimentar sentimentos e a rir e a chorar. Sonho que amo, e que sou amada. Sinto o assombro e a alegria dos amantes correspondidos.
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Acho que o amor é o inverso da morte.
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Não tenho passado. Pode procurar à vontade, senhor jornalista, não encontrará nada. Nem uma cidade natal, nem amigos de infância. Nada! Nada de nada! Nasço nos palcos, noite sim, noite não, e às vezes noite sim, noite sim, e no final morro nos palcos. Não existo fora dos palcos. Não existo nas noites em que não canto.
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Fui feliz com ela e suspeito que nunca a conheci. Teria sido feliz se realmente a tivesse conhecido? Penso nisso o tempo todo.
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Quando a minha mulher me perguntou o que se passava fui sincero.Há muitos anos que não havia entre nós nada que se parecesse com sinceridade. Sinceridade é quase amor.
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- O Ramiro não gosta de falar com estranhos.
- Compreendo. O problema é que para ele todos nós somos estranhos, certo? Todas as pessoas...
- E o senhor não concorda? Somos todos estranhos uns em relação aos outros. Podemos usar as mesmas palavras mas não falamos a mesma língua.
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Luanda corre a toda a velocidade em direcção ao Grande Desastre. Oito milhões de pessoas aos uivos, aos choros e às gargalhadas. Uma festa. Uma tragédia. Tudo o que pode acontecer acontece aqui. O que não pode acontecer, acontece igualmente. Estamos no século XXI. Estamos lá muito atrás. Estamos mergulhados na luz. Estamos afundados no obscurantismo e na miséria. Somos incrivelmente ricos. Produzimos metade dos diamantes vendidos no mundo. Temos ouro, cobre, minerais raros, florestas por explorar e água que não acaba mais. Morremos de fome, de malária, de cólera, de diarreia, de doença do sono, de vírus vindos do futuro, uns, e outros de um passado sem nome.
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Voltando ao princípio. Esta é uma das vantagens da literatura em relação à vida: podemos sempre voltar ao princípio.
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Sabe, sou uma colecção de personalidades - mas não somos todos?
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Em Portugal já quase não há labregos. As aldeias foram abandonadas. Os sotaques regionais extinguem-se lentamente. Suponho que O Orgulho Grego seja uma das últimas tascas portuguesas no mundo. Em Lisboa desapareceram todas, como resultado da lamentável extinção dos labregos, é claro, mas sobretudo devido à insensibilidade dos legisladores europeus, que para protegerem a saúde dos consumidores não hesitam em retirar, literalmente, o sal à vida. Hoje os europeus têm muita saúde, mas sentem-se mortos. São mortos muitíssimo saudáveis. Nós, pelo contrário, padecemos dos mais diversos males, e morremos muito, morremos constantemente, mas vamo-nos embora com a barriga cheia. Saber viver é saber morrer.
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Habituei-me a pensar no meu marido não como quem pensa numa pessoa mas como quem pensa num lugar. Os lugares são estáveis. Estão lá sempre. Lulu era a minha cidade natal, a casa dos meus pais, as paisagens da minha infância, um sólido cais de pedra, um porto de abrigo capaz de me proteger nas tempestades.
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Sou aparentada com tudo quanto escurece.
Uma estrela, dizes?
Pode ser. As noites estão cheias de estrelas e no entanto vê como são escuras. O brilho das estrelas não ilumina caminho algum.
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Devíamos poder morrer temporariamente, como quem vai de férias. Não, não como quem dorme! Como quem dorme, não! Não digas disparates. Dormir é viver sem a opressão da consciência, e às vezes nem isso. Em sonhos também sofremos com remorsos. Também temos medo de morrer. Também adormecemos. Também morremos. Eu queria morrer de verdade, deixar de existir, de forma a que durante algum tempo tudo fosse nada. Nada em mim e à minha volta. Eu flutuando no infinito nada.
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Julgas que não o amo, ao escritor?
Amo-o tanto que não o quero infeliz comigo. Quero salvá-lo de mim. Sou como um mar que rejeitasse os seus afogados. (...) Os homens repetem-se no amor. Repetem-se em tudo. São animais monótonos e estúpidos.
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Nas igrejas, ao menos aqui em Angola, é comum as pessoas dirigirem-se em voz alta às imagens de Cristo, da Virgem Maria, de qualquer santo, rogando, implorando ou mesmo censurando-Os. Ninguém acha isso estranho. As imagens estão lá, afinal de contas, como uma espécie de telefone público para o além. Um telefone público só com bocal, sem auricular. As pessoas podem interrogar as imagens, mas não têm direito a escutar as respostas. Quem se dirige a Deus é devoto; quem afirma ouvir a voz de Deus é maluco. Eu não sou nem devota nem maluca. Falo contigo para fingir que não estou a falar comigo.
O vazio, tu sabes. O vazio e O que vem a seguir não tem nome.
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- O evidente mente - repete às gargalhadas. Luca gosta de jogos de palavras. Nem sempre acerta. - Se queres encontrar a luz procura-a na escuridão.
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- Li os seus livros. Há anjos em todos eles.
. Disparate!
- Sim, há anjos em todos eles. Não estou a dizer que você acredita em anjos. Estou a dizer que você gostaria de acreditar. Simpatiza com a ideia. Eu também não acredito, claro. Mas interesso-me por tudo em que não consigo acreditar.
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Disse-me Deus:
A vida começa com lágrimas.
A vida termina com lágrimas.
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O futuro é a solidão por estrear.
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Era como um sonho, mas sem a escuridão dos sonhos. Todos os sonhos são escuros. Mesmo quando têm luz, são escuros nas margens, não achas? Os meus são.
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Escrevo para iluminar os corredores da minha alma. (...) Além disso, é verdade: conheço bem a luz que dorme em certas palavras, a noite que se esconde noutras. Há metáforas que deflagram como granadas, estrofes capazes de abrir clarões à nossa frente. Já me aconteceu ter cantado os mesmos versos centenas de vezes sem os compreender. Então, de repente, num palco qualquer, o Bozar, em Bruxelas, o Finlândia Hall, em Helsínquia, o Koninklijk Theater Carré, em Amesterdão, num palco qualquer, aquela mesma canção acende-se e revela-se: abre-se, como uma porta, para um mundo de cuja existência nem suspeitava. Quando me sinto perdida sento-me e escrevo. Quando estou irremediavelmente perdida, canto.
Canto para me salvar.
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- Perguntar é pensar, menina, e quem pensa acaba sempre a contestar. Ninguém quer pensadores neste país.
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Aborrece-me que Deus não permita viver um acontecimento tão importante quanto a morte senão uma única vez - e ainda por cima sem direito a ensaios.
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Na dor voltamos a ser crianças.
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Kianda era uma alma indomável e talvez por isso nos fascinasse tanto, a nós, almas domésticas e domesticadas. O mesmo fascínio, o mesmo medo que os povos sedentários sentem em relação aos nómadas.
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- Tenho de conseguir compreender. Acho que só serei capaz de perdoar o que ela nos fez depois de conseguir compreender. (...)
- Você tem razão - disse-lhe. - Perdoar é compreender.
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Eu sabia que estava a sonhar. Sabia que o cão não era autêntico. Contudo, sentia medo. O cão talvez fosse produto da minha fantasia, mas o meu medo era real. Enquanto o sonho avançava eu pensava nisto: em como os sentimentos são sempre autênticos, mesmo quando tudo o resto é inteiramente falso.
Nunca saberemos se existe quem amamos.
Mas sabemos que o amor existe.
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Há quem confunda a alegria com a felicidade. A alegria não se parece com a felicidade, a não ser na medida em que um mar agitado se parece com um mar plácido. A água é a mesma, apenas isso. A alegria resulta de um entorpecimento do espírito, a felicidade de uma iluminação momentânea. O álcool pode levar-nos à alegria - ou um cigarro de liamba, ou um novo amor - porque nos obscurece temporariamente a inteligência. A alegria, pois, tende a ser burra. A felicidade é outra coisa. Não ri às gargalhadas. Não se anuncia com fogo-de-artifício. Não faz estremecer estádios. Raras são as vezes em que nos apercebemos da felicidade no momento em que somos felizes. Eu fui feliz - nos meus últimos dias - em clarões de assombro. Relâmpagos de lucidez extrema, de absoluta comunhão com os meus músicos, o público, as palavras que saíam dos meus lábios."