novembro 18, 2011

A Entrevista.

A minha mãe.

Olho a minha vida em retrospectiva, muitas vezes, quando o espelho da reflexão desce sobre os meus ombros e me faz escutar o rumor marcado do passado, o vidro abre-se já sobre um  vasto lençol de cristalizações. Em todos esses exercícios necessito inevitavelmente de olhar mais alto, de coser a carne ao espírito, de envolver tudo e todos numa promessa de segurança, de reencontro. Desde pequeno, ainda a linguagem não havia aprisionado a realidade, já o fascínio com os mistérios da vida, com as esquinas do invisível me tocava a pele como um arrepio que invade a inocência primeira e a torna um circuito de surpresa e movimento. Cresci numa família muito comprometida com rituais, enraizada num lugar a sépia, profundamente necessitada de cobrir o presente com a energia dos antepassados, qual alimento para uma loucura que transforma o corpo num silêncio comovido. Não me sei dizer sem eles, sem este aperto no peito que me faz vergar, no meio da rua, quando um rosto, com um olhar certo das compensações humanas, me traz o meu avô sob a forma de um vento quente, repetido, dançando cara abaixo, sinfonia de um mundo que ressurge a espaços regulares. Nunca quis fazer um intervalo nesse quotidiano, nunca me imaginei outro por entender  não haver outra estética, outro modo de ser hábil de mãos, pés e mente e o sofrimento que nos ataca a estrutura, em duras vagas, não nos devora os princípios, a lealdade a um ideal, a uma tribo.
Com a minha mãe - cuidadora em casa, como na escola, implicada até ao fundo na possibilidade de servir a comunidade, para lhe devolver crianças mais fortes, esclarecidas, confortadas - descobri o rosto desse Deus da partilha, do próximo que merece ser acolhido, tratado, e alimentado com a compaixão que nos faz ser construtores de sonhos e apaziguadores de mágoas. O magistério, no caso de minha mãe, foi uma forma de ela própria não esquecer a sua, perdida precocemente para a doença, invadindo o mundo com o exemplo que lhe moldou a alma, tentando que as suas crianças tivessem a música da inocência a puxar o céu para o correr dos dias. Sempre admirei essa caridade anónima, sem lastro de vaidade, que minha mãe praticou e pratica como uma rede de protecção, como sinal de um amor que lhe extravasa o corpo e se entranha no frio aguçado de algumas vidas. Nunca vivi alheado dessa gente, menos protegida do que eu, sempre aqui em casa o trajecto das desigualdades foi abordado, agradeço-te o teres puxado pela minha ética, por me teres feito gemer o cansaço que veste os corpos frágeis das pessoas que nos envolvem, para saber valorizar a sorte que o destino me trouxe, mesmo quando tudo parece desabar, para mim, também. 
Testemunhei um Cristianismo afinado pelo debate, pela curiosidade intelectual e pela prática de actos que fizessem as palavras trabalhar num contexto de realismo - o voluntariado, a companhia aos meus avós, ou a preocupação com os mais próximos foram aspectos que permitiram deslocações na ordem do mundo, um peso bom no coração cheio de estórias e de fundo. O amor que sinto pela minha mãe preenche-me até aos ossos, dá-me as coordenadas da minha morada, nunca foi precisa a Bíblia ou o Padre para nos enredar na procura do lado de fora da noite, pois se amamos, estremecemos e rezamos em diálogo directo a um Deus que nos mantenha todos unidos numa ternura que é voz de um dia que não acaba. O meu Deus é um Deus intrínseco, transparente, que vai crescendo, ganhando corpo na rua, no chão da vida, nas palavras mais ausentes, num compromisso que nada tem que ver com rituais escravos que ofendem a nossa liberdade de questionar, de desconstruir para compreender. Qual o sabor da penumbra em que se escondem tantos rostos? Que amparo há para a solidão dos incompreendidos? Nada disto vem nos livros, nada disto se sabe -  intui-se, opera - muitas vezes contra a própria vida que nos foge por entre obrigações discutíveis. Acredito que o amor pode mudar as cores do mundo, pode inventar tantas vidas quantos sonhos nos façam mover, afirmar, edificar e é nesse espaço de incêndio e de luz matinal que me reúno com a minha família, com os que amo até ao absurdo do corpo e do verbo.
Com o pretexto de um espelho, posso falar do sofrimento que nos faz pesar os ossos, duvidar do sentido perene das rotinas, ou cortar amarras com os cacos que se vão desprendendo do nosso corpo: estive aí, várias vezes. E, em todos esses dias e noites, precisei de encontrar uma fórmula que me permitisse levantar e ter nome, identidade, direcção, e sempre tentei atordoar o menos possível os outros: nunca deixei de aceitar o que me foi acontecendo, procurando, humildemente, resistir, interpretar, ultrapassar - o sofrimento para mim tem uma dimensão subterrânea, absolutamente pessoal e não se confunde com o espectáculo da auto comiseração publicitado como um cartaz de um plano para apagar a vontade, para esquecer o reflexo de uma hipótese, no fundo de uns olhos doentes. Sempre procurei Deus, de noite, pedindo-Lhe que marcasse um encontro com o meu avô, com a força que o traria para uma nova vida, dentro das minhas fragilidades e aflições. Há um bocado de todos os que amei nos contornos que a imagem devolve, nas pausas da distracção, e essa é a rua onde moro, onde tudo se junta - as alegrias, os sons, o fumo suspenso das palavras por dizer, o cimento do amor como um vício maior do que a morte. A casa onde vivo é uma noite sem sono, um passeio por entre escombros, e nunca essa verdade imperfeita me fez duvidar que, onde acaba a ciência do homem, começa o fascínio exigente do mistério. Em todos os objectos que me rodeiam dormem os meus mortos, as almas que me aquecem o maquinismo do corpo, me ajudam a superar a doença, o desânimo ou o pesado tecido da tristeza. É uma casa onde chego a Deus para lhe perguntar, ao ouvido, onde pára o espírito heróico do meu avô, os longos dedos de fina ironia da minha tia Né, ou a genuína bondade de minha avô que fez minha mãe ser o meu orgulho mais certo.
A minha conversa com Ele é como uma longa estrada romana, onde a escuridão da noite nos abre o peito para sonhos de estrelas e pó de ruínas amadas como a uma lenda que se perpetua na chuva que faz os olhos rebentarem de emoção. Se pudesse, ficava sempre assim, ao lado de minha mãe, no calor de uma intimidade onde se confessam as dores mais interiores, cercadas de orvalho salgado. Eu e a minha mãe sempre elegemos o Inverno como a nossa estação, o amplo tecido da água lava o mundo da sujidade, o frio convida a uma viragem para dentro onde as sombras se afagam como uma ferida que é preciso atingir para conhecer. Deus está no meio de nós, no percurso que vai da minha boca ao coração da minha mãe e nesse retorno, mais amplo, pela nudez dos factos e confissões. "Despedi-me da minha mãe com um fato verde escuro de caxemira que eu lhe escolhi para a adormecer e para me aquecer o coração desfeito", aos dezassete anos, acrescento eu, vendo assomar nos teus olhos o amor líquido, alto e volumoso que faz com que não faltes a esse encontro com o melhor de ti, com as pessoas que fazem com que tudo seja ainda possível, pelo sangue de saudade que atinge proporções de corpos nunca queimados pela morte.  
Sentado em frente a mim, acredito que o que impede a dissolução dos rostos, do calor das memórias mais entranhadas em nós, é esse abrir caminho para cima, para a frente, como uma trança de luz que nos resgata de um abismo de escuridão e de solidão. Deus é corpo, matéria, pele de linho, água, e tudo o que de imperfeito se gera entre o milagre do nascimento e a dureza da morte, é passado e presente, reencontro e homenagem, dúvida e surpresa-de-ser. O ponto é sempre um e um só: de onde vem o amor, como ele nos transforma e como, com ele, povoamos o mundo e chegamos ao céu, numa fidelidade a uma causa sem nome, mas que no interior do peito humano desenha marcas de passos que se confundem com a Eternidade.

Just So.