abril 30, 2009

"Ter da saudade o que queres"



Talvez um dia a voz dos acontecimentos deixe a tua própria respirar, talvez.
Digo-te isto e agarro-me à tua mão como que puxando a tua história de encontro à minha vontade de mudar o mundo.
Queria que as certezas que nos colocam sobre os ombros para caminharmos pelo mundo desaparecessem. Continuo a sentir que a justiça devia ser o caminho, não faço a apologia dos heróis porque sei que, dentro do estoicismo, correm gritos de cansaço feitos da carne humana tão invisível.
O que interessam passos vazios e conversas leves que o vento da memória limpe ao virar dos dias? Quero ficar ao teu lado, quero abraçar a tua desgraça e sentir o abismo da derrota ser maior do que o da solidão. Sim, perdemos o rumo lá fora mas temos sempre esta casa que é a amizade sem limites, sem horas e temas, sem agenda.
Um dia, explico-te. Que venha esse dia e todos aqueles em que a compreensão da vida se faça pela entrega, pelas lágrimas e alegrias que nos juntam, pedaços colados mil vezes pelo cuidado que colocamos no que gostamos.
Não interessa se somos menos sortudos ou se os outros algum dia vão perceber. Não tenho tempo para isso. Só sei que, até hoje, chegaste até mim e soubeste lembrar como o primeiro passo para construir. A história vai sendo cosida pelas mesmas mãos desamparadas que perguntam.
Só sei que a resposta não passa de uma dança de volta. Ao mesmo sítio, onde a mentira do mundo tem o sabor da verdade, a nossa.

abril 25, 2009

Acordar

Um dia, quando começa, parece igual aos
outros. A mesma luz que entra pela janela,
ruídos de obras e automóveis, vozes... Mas
o que nesse dia me falta é outra coisa: a tua
voz, a surpresa de cada instante que me dás,
uma luz diferente que não vem de fora, da
mesma rua e do mesmo céu, mas de dentro
de ti. Assim, o que faz a mudança do mundo
e das coisas não é o mundo nem as coisas;
somos nós, e a relação que nos prende um ao
outro - isso que, não sendo nada para fora
de nós, é tudo o que temos nesta vida.
Nuno Júdice

Rotação

É nos teus olhos que o mundo inteiro cabe,
mesmo quando as suas voltas me levam para longe de ti;
e se outras voltas me fazem ver nos teus
os meus olhos, não é porque o mundo parou, mas
porque esse breve olhar nos fez imaginar que
só nós é que o fazemos andar.
Nuno Júdice

Solidão

Um mar rodeia o mundo de quem está só. É
o mar sem ondas do fim do mundo. A sua água
é negra; o seu horizonte não existe. Desenho
os contornos desse mar com um lápis de
névoa. A pago, sobre a sua superfície, todos
os pássaros. Vejo-os abrigarem-se da borracha
nas grutas do litoral: as aves assustadas da
solidão. "É um mundo impenetrável", diz
quem está só. Senta-se na margem, olhando
o seu caso. Nada mais existe para além dele, até
esse branco amanhecer que o obriga a lembrar-se
que está vivo. Então, espera que a maré suba,
nesse mar sem marés, para tomar uma decisão.
Nuno Júdice

O amor, dizes-me

Escuto o silêncio das palavras. O seu silêncio
suspenso de gestos com que elas desenham
cada objecto, cada pessoa, ou as próprias ideias
que delas dependem. Por vezes, porém, as
palavras são o seu próprio silêncio. Nascem
de uma espera, de um instante de atenção, da
súbita fixidez dos olhos amados, como se
também houvesse coisas que não precisam de
palavras para existir. É o caso desse sentimento
que nasce entre um e outro ser, que apenas
se adivinha enquanto todos falam, em volta,
e que de súbito se confessa, traduzido em
breves palavras com a sua silenciosa verdade.
Nuno Júdice

"Mankind Is No Island" by Jason van Genderen

abril 11, 2009

Die Verwandlung

"O lado quente da saudade"
Há rotas que a vida segue em piloto automático. A perda acaba por se insinuar, aos poucos, e deixamos de sentir aquela segurança própria da infância, quase ridícula de tão simples.
Tenho pensado nisso, em como há furos que nos marcam a face da vida e, claro, do acreditar. Há pessoas que são a nossa vida como se a nossa vitalidade viesse desse compromisso radical com a partilha. Qual é o lugar de Deus nesta história? Às vezes, tenho quase a certeza que fomos nós que O criámos. Outras, pergunto onde O deixámos. Sempre fica, no entanto, a imagem do Amor como o verdadeiro lugar da eternidade - lugar de princípio, de começo ou de origem.
Criámos Deus como que uma ficção que prolongasse o nosso Amor, quisemos provar que, no avesso do cenário, nos meandros da factualidade que dói, há algo que permanece incólume. Foi a vontade de desmaterializar o amor que nos levou a olhar para cima. Pusemos lá uma figura que, alimentada com a nossa fé, nunca se cansaria de contar os segredos que ficaram por trocar.
E como nunca dizemos adeus a essa parte de nós escolhemos um sítio para onde pudéssemos olhar, ao fim do dia, depois da vida lá fora - há um céu de saudade em cada um de nós que cresce. Ser adulto é ser menos por se ter tido mais, enquanto os que nos amam nos acolhiam no abraço físico que dissipava as dúvidas.
Mesmo que seja uma ficção, mesmo que seja só desespero, não interessa. O amor encontra os seus caminhos e, se o sentimos cá dentro, não julgaremos os defeitos do remédio. A derradeira questão é nunca dizer adeus mesmo que, para sobreviver, tenhamos de pedir a-Deus.


P.S. Há qualquer coisa de kafkiano na explicação de Deus. Mesmo que nos pareça um "absurdo" há mais qualquer coisa. Tenho pensado nisso e, só por isso, a minha realidade é já invadida pela ideia. Um dia destes vou olhar para cima. Não (só) por vontade mas por necessidade.

Humaníssimas figuras


."Angela Vicario descobriu então que o ódio e o amor são paixões recíprocas."

."Dai-me um preconceito e moverei o mundo."

in "Crónica de uma morte anunciada", Gabriel García Márquez

Piétons

A chuva caiu sobre a janela dos meus olhos, deixei de te ver só com felicidade pois o mundo ensinou-me a chorar com ele as coisas boas que sempre se evaporam com o nascer do dia. Noites de entrega cúmplice, os olhos a arder por uma descoberta que, jurámos, iria durar a vida inteira. Longe daqui e das palavras que calam o amor.
Ouvi essas mãos, no abraço apertado da verdade, sublinhar com tinta permanente um espaço só nosso, espécie de refúgio contra a planície quotidiana. A respiração da noite no teu ombro e um arrepio de necessidade, daquelas que te fazem engolir o outro para sobreviver.
De dia, nos dias que se seguem, ouço a marcha do teu toque. E afinal a memória é um lugar de desejos.

(silêncio)

."Um homem é mais um homem pelas coisas que cala do que pelas coisas que diz."
Albert Camus


. "O silêncio é o modo autêntico da palavra."
Heidegger
.É certo que, durante a vida, há um silêncio na oblíqua que se impõe e nos obriga.

"O que são as noites nas prisões"

"O absurdo fundamental manifesta antes de tudo um divórcio: o divórcio entre as aspirações do homem à unidade e o dualismo intransponível do espírito e da natureza, entre o impulso do homem em direcção ao eterno e o carácter finito da sua existência, entre a preocupação que é a sua própria essência e a inutilidade dos seus esforços. A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos do absurdo. (...)
Certo é que o absurdo não está no homem nem no mundo, se os tomarmos separadamente; mas, como é o carácter essencial do homem o estar-no-mundo, o absurdo é, em suma, unitário com a condição humana."
Jean-Paul Sartre
P.S. - Somos todos estrangeiros na terra que nos dão. Nossa?

Procuro-te

Trago-te comigo,
mas sinto a tua falta.
Não sei de mim, balança cá dentro um vazio,
que procura.
Sei da tua imagem, presa aqui,
e de mim, lá longe,
no lugar onde os sonhos esperam por,
uma outra realidade?
Alguém nos espere no fim,
deste tempo, buraco onde a vida cabe toda,
os ponteiros da morte antes mesmo de,
me despedir de ti.