agosto 29, 2010

Maina Mendes

"Por toda a vida Maina Mendes sagraria assim, dessa crua distância, o direito ao absurdo dos demais e seu.
(...)
O dedal aqueceu e o anelar parece assim estar-lhe colado pela película de suor que os tem húmidos a ambos. Tudo foi pois trabalhado por forma a que a sua carga de remota, incontrolável ira haja tomado feição de exigência ao que faz, ao que a cerca. Uma exigência porém morosa, precisa. Como alguma coisa fitada por longo tempo e porém visto tudo. E, como todos os ocultos do seu tempo, exigente de seus invólucros e de suas moradas.
(...)
Tremem então e se recolhem a pensar que por certo se deu pela falha que a pata leonina do móvel abriu no corrimão, por certo o serviço será tido por descuidado e canhestro e aprenderão então, definitivamente, a malquerença ao ofício que humilha que é malquerença do mundo que se conhece, princípio de invenção de um outro."

agosto 13, 2010

A Wi(n)dow.

Não lhe podia fal(h)ar em vida, (ou)

[Despite the disappearance of the loved one..?]
*"Dans le Lit", Toulouse-Lautrec, 1893.

Silogismos*

A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.

Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.

A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?

Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.

(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)
*Ana Luísa Amaral

Poema.

agosto 10, 2010

Eugénia e Silvina.

"Eugénia escapava-lhe porque nada invejava ao corpo nem à mobilidade das paixões; a sua reflexão era ter atenção nos outros e na desigualdade de fortuna, que descobria o semelhante como esquecimento de Deus no mundo. Ela agia como memória do Criador que se manifesta nesse olhar que não pode morrer porque está em causa revelar o outro ser; e só morre quando o salva.
(...)
Nós somos arrastados por tudo o que pode constituir um indício da nossa identidade futura, e isto sem tréguas que dêem pelo nome de dor ou de prazer.
(...)
Mas porque teria Eugénia de adoptar normas tão restritas? Era muito rica, e esse estado proporcionava-lhe a única escapatória possível ao papel que a sociedade pretendia dela, o de esposa e mãe; quando as outras mulheres tinham só como fuga a doença e a incapacidade, de que se valiam mais frequentemente do que se podia supor, ela, Eugénia Viseu, gozava de uma prerrogativa menos lancinante: a fortuna pessoal amassada por três gerações e que lhe caíra no regaço como uma chuva de oiro. Mas as obrigações para com o sistema implicavam um certo número de obediências numa carreira que tinha que identificar-se de qualquer modo com uma forma de praxe tributária. Ela esquivava-se a cumprir com o valor social da maternidade, mas tinha que depor aos pés do médico (que partilhava os interesses do Estado do século XIX e ainda partilha) o seu tributo, que não podia ser outro senão a enfermidade; e esta tanto mais terrível quanto Eugénia queria liquidar a sua dívida para com a sociedade que lhe pedia contas, mesmo quando lhe pedia bênçãos.
(...)
Comiam frente a frente, e os grandes espelhos da sala multiplicavam as imagens duma gente educada mas não sensível. Esse traço europeu, de quem protege a cultura como um investimento mas não a associa ao espírito, incomodava-a.
(...)
Assim, [Eugénia] acostumou-se à dor como a um alimento de que tirava forças e uma espécie de fome sagrada por nova provocação. Sabia que não ficaria muito tempo sem ser instada pela dor e sem lhe prestar culto. (...) Maria Leocádia escreveu uma série de apontamentos que se referiam à Malhada e recebeu de Eugénia algumas confidências, aproveitando da solidão mesquinha que a enfermidade produz; e que faz a alma cair em desespero, que é humilhar-se julgando só praticar exercício de memória. (...) A dor era um idioma afinado para conversar com todo esse tempo com o qual ele [João Trindade] tinha um contrato para sempre.
(...)
João Mendes era um liberal, mas um liberal impossível. O sentido do segredo, que preside ao movimento dos partidos, ele não o tinha. Ele vivia na actualidade pura, participando com o presente e o ausente, coabitando com o contrário, participando, em suma. Este ideal de vida, que exprime uma filosofia que não se reporta às ideias que o próprio concebe, impedia João Mendes de ocupar um cargo, de receber uma mercê. Tudo nele era amor de justiça e, portanto, humildade, que é a metafísica do democrata. Ocupou-se da causa popular enquanto ela tinha relação directa com essa fé que a matéria reúne como explicação de uma coisa comum. Mas nunca fez da popularidade uma escalada, nem do triunfo uma aspiração.
(...)
Mas ninguém se apaixona por alguém só porque é belo. É preciso pressentir o perigo da beleza para admitir a salvação que o perigo engendra. A beleza tem uma componente de tragédia, que desloca todo o optimismo do coração humano. A sua realidade manifesta, o seu inventário conduz ao sentimento de perda que descreve a morte. Quando se ama alguém muito belo é porque esse alguém se situa no hemisfério humilde do que está condenado. O amor é uma compensação de tudo o que vai morrer. Não que morrer seja injusto; mas é inesperado, porque interrompe a perfeição dos homens. A morte é justa porque se atribui ao segredo profundo do ser; mas é um mistério constrangedor porque nos retira toda a possibilidade de participação.
(...)
Escolhia o pobre como área afectiva porque ela própria se sentia pobre e sem qualquer refúgio para o seu padecimento íntimo. O século XIX inventou o pobre, como o tempo de Constantino inventou a Santa Cruz - como uma proeza de instalação no negativo que reverte a favor dum poder. Dependente do efeito sobre a imaginação, esse poder, a partir de certo momento histórico, não dissimula mais o pobre. Ele está violentamente presente como imagem visual, já privilegiada na filosofia grega, imagem e espaço visual capazes de contratar a imaginação a poucos custos. A aparência visível do pobre não tem uma única dimensão; ela faz aparecer sombras e reflexos que dão ao sentido comum das pessoas o sentido duma unidade no mundo. O pobre é como um espelho que contém tantas imagens quantas as que nele projectamos. Para Eugénia Viseu, o pobre era a presença que ela própria se atribuía, sem ponto de perfeição que a acabasse e que mostrava quanto essa perfeição é inatingível.
(...)
Ela pensa, erradamente, que o amor destrói a ameaça. O amor só é provável quando, como a oração, ele pretende abater a ordem e produzir o milagre; porque a plasticidade do mundo depende do que parece real.
(...)
Um sinal de luto profundo é o abandono do lugar onde se vive e se têm recordações. Há tribos muito primitivas que conhecem esse regime para se libertarem da substância dum sentimento doloroso. Começam por queimar a casa e todos os objectos do morto e, se isso não basta, partem para longe e iniciam nova vida. (...) Ele não abolia o luto porque o luto era a realidade da sua existência.

agosto 02, 2010

Arte Poética*

o poema não tem mais que o som do seu sentido,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma,
poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva
fresca e os teus lábios, lê-se sorriso entendido em mil
árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura
de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não
se escrevem, lê-se país e mar e céu esquecido e
memória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, poema lê-se
silêncio,
lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu
olhar de doce menina, silêncio ao domingo entre as
conversas,
silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio
de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema
calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz,
a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
o poema é quando eu podia dormir até tarde nas férias
do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu
fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não
conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a
letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do
quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel
e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas
e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças
e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo.
o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se
chama
poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de
si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para
abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo
o que quero aprender se o que quero aprender é tudo,
é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento,
não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são
bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a
raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos
conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um
torrão de terra a cantar hinos e a estender mulheres entre
os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema
porque a palavra poema é uma palavra, o poema é a
carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre
os telhados na hora em que todos dormem, é a última
lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia,
esperança.
o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos,
tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se
com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e
incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,
a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo
para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por
mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os
lugares
onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,
o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me
olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a
palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido.
*José Luís Peixoto

The Dreaming Tree.