setembro 20, 2012

Nas tuas Mãos.

"Dizem que o amor se faz de uma comunidade de interesses subterrâneos, restos de vozes, hábitos que nos ficam da infância como uma melodia sem letra, paixões pisadas na massa funda do tempo, mas nesses anos entre guerras os sentimentos explicados não interessavam a ninguém. O amor era então criação fulminante do tédio e da inocência, feito do carnal recorte da beleza, magnífico de crueldade. Amei-te de repente, com a luminosa injustiça que me afastou de todos os que me amaram por me serem semelhantes.
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Nunca contei esta história a ninguém. Não me pareceu que tivesse qualquer interesse, as pessoas aborrecem as histórias felizes e têm razão, a felicidade convoca o que há em nós de mais melancólico e solitário.
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Tudo o que há para saber do amor é deslumbrada aceitação. Não se aprende a amar, Camila; não há vontade democrática capaz de espalhar a paixão pelas bolsas de pobreza onde ela não chega, nem fábricas capazes de a produzir em peças, para montagem, construção ou exportação. Não há nada de justo neste sentimento: a justiça, aliás, não passa de um espectáculo de ordenação do mundo, um circo que inventámos para substituir a irracional lei do coração. Não procures explicação para a minha vida, nem a tomes com pena ou escândalo; quando eu ficar tão velha que pareça louça, lê nestes cadernos que eu fui feliz. Não te preocupes como ou quanto, nem caias na tentação de distinguir amor e paixão: a pouco e pouco, fui vendo que essas divisões são armadilhas que se montam para que o pano caia sobre os nossos olhos e a imortalidade desapareça do nosso horizonte. O amor, Camila, consiste na divina graça de parar o tempo. E nada mais se pode dizer sobre ele.
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O amor não tem portas que possamos abrir e fechar, nem passagens secretas para um sótão onde possamos fazer férias dele. Toma conta de tudo em nós, envolve-nos como um lençol de tédio, sedoso, infindo. Ninguém fala deste tédio sublime, tão contrário à acção e à eficácia, imóvel inimigo do progresso do mundo. Só no trono do sonho, iluminado e funesto, o amor interessa. Prolongada, a vida torna-se demasiado curta e o amor ganha o ritmo da chuva que bate leve, levemente.
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A vida é uma infindável colecção de testemunhas: precisamos que nos observem, na vitória como no fracasso, precisamos que nos prestem atenção.
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As fotografias provavam-me que a verdade se podia fixar para sempre. Depois o acto de fotografar tornou-se-me uma obsessão, quando a verdade deixou de existir para além da imobilidade das imagens.
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Talvez a vulgarização da beleza acabe por a fazer regressar, em saturação, à subjectividade que inventou a arte. Quanto mais intensa é a fonte de luz, menos suportável é olhá-la e mais sombra provoca, até que um lado seja visível.
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Descobri cedo nas fotografias da minha mãe que a felicidade é uma colecção de instantes suspensos sobre o tempo que só depois de amarelecidos pela ausência se revelam. Nessas fotografias aprendi a não temer o amor e a nostalgia dele, e tornei-me, sem que ela se apercebesse, uma outra espécie de caçadora da luz. No movimento preciso dos dedos longos dela sobre as máquinas de fugir à vida descobri o erotismo como pressentimento de ferida, trabalho incessante de recordação. Trago no meu sangue que é dela esta calada paixão pelos amores mortos, esta determinação de só depois entender o essencial, de amar as distâncias como única proximidade do céu. (...) Foi o desespero que conduziu a minha mãe à fotografia. Uma vez disse-lhe, em tom de desafio, que a fotografia é um inventário de mortos. Uma arte lúgubre. Ela riu-se: «Por isso é que eu gosto dela.» Hoje, parece-me que até o desespero é difícil. Pelo menos é difícil seguir até ao fim de um desespero inteiro.
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Escolhi arquitectura porque me parecia o único modelo de arte onde a ideia de responsabilidade social podia ainda sobreviver sem troça. Uma arte onde o grande imperativo da liberdade se podia ainda exercer com um propósito altruísta, escapando à frívola fantasia combinatória destes anos de contínua reinvenção individual. Mas também a arquitectura ajoelha diante do deus da ostentação.
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Por mais que me esforce, continuo no estado mitológico puro: fé ou desespero. Não sei fazer de conta que vejo o que não vejo.
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As pessoas herdam muitíssimo mais do que à primeira vista se pensa. Valores, formas de sentir e exprimir o sentimento. Não é tão pouco importante como parece. A origem da minha curiosidade pelas formas do universo e do meu amor por todas as formas de arte enraíza-se menos na profissão da minha mãe do que numa educação para a alegria, numa noção do mundo como lugar transformável, cheio de possibilidades. Foi essa a atmosfera da minha infância - e para ela contribuiu não só o sangue da minha mãe (e do meu pai?) como o exemplo da Jenny, e até da nossa velha Rosário, quase analfabeta mas cheia de um genuíno encantamento pelos pequenos pormenores que aquecem a vida."
 
Inês Pedrosa.