agosto 30, 2011

Avô,

os teus oitenta anos cumpriram(-se) (n)o meu coração de treze. E ainda hoje te agigantas em mim, a saudade é morada da eternidade ou o sangue que nos dá o mesmo nome, silêncio, A. e A. E então tu não estás morto, povoas cada promessa de amanhã que me chegue, das tuas mãos, onde as minhas foram colher o melhor que há em mim.

agosto 21, 2011

Velório de Inverno*

Em memória do meu tio-avô,
 Arnaldo Mesquita.
Acabas de chegar. Está muito frio:
poucos amigos e alguns parentes
vão falando em surdina e entredentes
de quem já não existe - era teu tio

e tinha a vida presa por um fio
que se quebrou enfim. Tudo o que sentes,
para lá das conversas inocentes,
é a alma a gelar no arrepio

da infância a despedir-se enquanto chora
pessoas e lugares que cada hora
dentro de ti transforma em nevoeiro.

À saída descobres, absorto,
que também tu começas a estar morto
na fria madrugada de fevereiro.
*Fernando Pinto do Amaral.

Onda a onda*

Onda a onda o desejo no
teu rosto de mágoas e de torres
levemente descaídas para
onde não sei se nasces ou se morres
quando os meus dedos cítara a cítara
tocam a música do teu corpo nu
lá onde os teus mistérios serão meus
e chegarei às margens onde tu
talvez então me digas quem é Deus.
*Manuel Alegre.

Para ti*

Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só olhar
amando de uma só vida 
*Mia Couto,
Outubro 1981. 

Aprendizagem*

As coisas estão no mundo
Só que eu preciso aprender
Paulinho da Viola.

Eu, a medida de todas as coisas?
As coisas estão no mundo
e todos os dias me espanto com elas.
Espanta-me o grito profundo
dos violentos pássaros matutinos.
A pedra inerte
no meio do caminho
ou servindo de aríete
nas mãos do indignado estudante coreano
espanta-me.
Maior mistério não há
do que a cruel sucessão das estações,
ano após ano.
Assustam-me os sons
eclécticos do quotidiano:
buzinas, choros, canções.
Igualmente: o áspero açoite
do vento nas árvores
fragilizadas.
Como um insecto cego e iludido,
sou atraído pelo fascínio da noite.
O oceano emociona-me,
assim como as rimas pobres:
amor e flor,
coração e paixão,
por exemplo.
Odeio injustiças, mas cometo-as,
fingindo desconhecimento.
Eis a minha única certeza:
tarde ou cedo,
serei triturado pelo velho moinho da morte,
cujas velas reinam, obscenas,
sobre todo o azar
ou sorte.
Mas estou vivo
e estou no mundo.
Ignorante e sábio,
doce e agressivo,
cobarde e capaz
de descobrir a coragem
no fundo do medo,
ingénuo e cínico,
em incessante aprendizagem:
eu, a medida de todas as coisas.
*João Melo.

agosto 18, 2011

Terror de te Amar*

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
*Sophia de Mello Breyner Andresen.

agosto 16, 2011

agosto 13, 2011

agosto 12, 2011

Missa in Albis [II].


"Então Sara põe-lhe a mão na boca. Está fria e Simão agarra-lhe o pulso. As faces juntam-se e é uma doçura de prodígio que lhe cai da respiração ao ventre, um redemoinho. As telas pulsam cheias de um sangue tingido de fogo e as bocas são como o glóbulo das mãos, o abraço inteiro. 'A alma é isto', pensa Simão e que gostaria de morrer ali. 'Se morrêssemos aqui', diz Sara.
(...)
Sara: Por que me feres? Tenho culpa que haja mundo e outros?
Simão: Entre mim e ti, tens.
(...)
O que parecia desprendimento e até paixão, não era mais que o limiar estremunhado do sono em que sempre viveu, rodeada de espigos da própria pele e de familiares mordazes, igualmente atingidos de um mal na moela do ser mas mais vigorosos.
(...)
Um livro nunca é o pleno terror, como uma cidade pode sê-lo; nem o esplendor de um outro ser amado.
(...)
Bem mais desgraçado é tentar reaver que haver: a honra, os bens, a liberdade. (...) Depois é a noite, Minha Filha, com todos os seus rumores e recrudescer de lembrança, que tal é a simpatia da noite com o intemporal. Assim esta. A noite que tudo altera e onde descaem as máscaras da compostura e as da esperança e todo o caminho andado se volve passagem obscura que para esta mesma noite ameaça. (...) No espelho eu estou de traje civil, e curvo-me sobre o tripé, os contornos difusos, a postura do pedido a que o seu meio-sorriso condescende, que não esse olhar alagado de um susto, que tem sempre, esses olhos de quem não nasceu criança.
(...)
Amar um pouco, que é a amizade e por isso a despeço dos meus hábitos, face ao desastre acarreta sempre a culpa de ter amado de menos. Tão mais tenaz quanto o houver sido a amizade.
(...)
Todos os medíocres possuem o talento da redução à verosimilhança; para a verdade carece o desvio da imaginação.
(...)
'E a beleza é a maior praga', disse o ex-médico, 'Convida-te a morrer.'
(...)
Sara respondeu-me que então só a autobiografia seria lídima e que, tirando Cão, que tinha voltado a comer, só lhe tinha acontecido quem ela tinha inventado.
(...)
A Igreja tem a confissão, que é uma forma de organizar o que digo: peca-se, cochicha-se ao padre e não há que mudar coisa nenhuma do que agrada a Deus, que é o que não muda.
(...)
Mas falar contra o tanto tempo não é abrir a boca. O muito tempo faz de tudo uma invenção. E inventar é sair incólume, pois não é, menina? Quem muito imagina faz-se imaginário e então quem pode assacar-lhe o quê? Tudo é prenda.
(...)
Fomos sujeitos à pedagogia pervertora de uma casta que não perdoa morar nas nossas casas, a proximidade sem mudança de estado: as serviçais. Com o filho do patrão todo o criado é mensageiro da dúvida, iniciador da suspeita que está na origem do conto. Que o conto não é registo, nem os Evangelhos, mas sempre revelação de um poder sobre a paternidade.
(...)
Teodora pensou noutra regra do género: o herói ou é rico, ou casa rico a contragosto com a heroína rica. O romanesco de evasão nunca é de pobres.
(...)
Nunca quis crer que hajam civilizações insondáveis, dominador e dominado é que têm pouco a dizer-se, que do conhecimento vem a estima.
(...)
Quando me perdi de ti, perdi-me de Deus, ou Deus perdeu-se em ti, não sei. Deixei de escutar o milagre, não havia mais essa sintonia iluminada, esses avisos de tudo num delicioso terror, e o Aleixo dizia-me que era um estado humano muito mais conforme, que tu me punhas numa histeria crítica que não tem nada a ver com o catolicismo são. (...) 'Agora sei que esta cara há-de acompanhar-me até ao fim e trespassar todas as outras.'
'O rosto da tua morte', disse Sara, respondendo às carícias, mas triste.
(...)
'Falas com maiúsculas', disse Simão a Sara, 'o Amor, a Justiça, Deus, como é que não te queres sentir defraudada e confusa?'
(...)
E pois que a paixão não é senão uma forma arrebatada de viver o medo, a permanente descrença do lugar em que somos, o objecto dela há-de retaliar da falácia. Oferecer-se a alguém é coagir a harmonia.
(...)
'Menti-te, é verdade. Pesa a minha mentira contra a natureza das tuas omissões. Só o interesse de outros me pode defender do terror de ser aniquilada pela tua perda. O amor que te tenho deixa-me totalmente indefesa, sem pele e sem mobilidade. Esse é o sinal do grande amor, qualquer dúvida torna-se intolerável. Fico suspensa de agonia com certos olhares teus a umas canelas, ou com os que trocas, breves que sejam, com alguém que passa. Um momento de desatenção é um suplício, um atraso é uma agonia de ciúme, e tu não és pontual.
'Preciso então da companhia de alguém a quem ame menos e que me deseje. É o princípio dos vasos comunicantes - fazer preencher o vazio transido que me deixa a dúvida de ti. Não é o que tu fazes alta noite, quando eu não posso seguir os teus passos até esses sítios onde sei que te deitas e me omites?
'Não me digas, como já disseste, que para um homem é diferente, que coisas dessas nada significam. Pois não significam o mesmo? Que te leva a esses excessos, que eu não cometo com ninguém, senão a necessidade de te distanciares das fauces de devoração disto, sempre abertas? A carne humana nunca é só carne, é com a tua alma que vais comprar um comércio carnal que te defenda do amor comigo.
'Somos iguais, a nossa circunstância é que é diferente. A minha defesa de ti está à vista, pelas ruas da amargura, por assim dizer, que crê que o pouco que me acontece ao coração e à mente, longe de ti, é vaidade; a tua processa-se em casas escuras, que por mais que digas de passe não são de passar sem deixar lá alguma coisa de mim, bem física na taquicardia e náusea que me dá ao imaginá-las.'
(...)
Depois me veio a dizer que soube logo, com resignação, que seria eu ou mais ninguém. Que esperara toda a vida e me reconhecera logo, de si, do seu sangue, por isso citara Florbela Espanca, que a impresssionara muito. Pensar que há sentimentos que os livros forjam, filha.
(...)
Ora quem gere os bens sempre se sente autorizado a gerir os afectos.
(...)
Sei pela minha, que a vida e os seus gestos tendem a repetir-se, não em farsa, mas até que alguma tragédia nos liberte delas, farsa e vida. E a verdade é que sem explicação múltipla não há mistério.
(...)
Comentava as montras de próteses: 'O que não se diz do fascismo é que aleija toda a gente, para sempre.'
(...)
Ora Sara decidiu-se a impor a sua expectativa. Para fazer um casamento de razão é preciso ser razoável e não pôr expectativa onde deve apenas haver esperança. Convencida que o que se passava entre ela e Simão era um hábito e um estado de espírito que se logram como uma receita de aspic, um trabalho fino, como as mayonnaises que aprendia com Irene Vizi, aceitou a assiduidade de Aleixo Garcia. Confundiu um acontecimento, oh bem concreto, com o jorrar de uma nascente, com um episódio da construção civil. O casamento é isso, mas ela confundiu-o com o amor.
(...)
Foi com Sara que aprendi que o escrutínio de uma progressão intensifica o prazer, afia os sentidos. Ela fechava-se ali como por dentro de uma obra onde erigia em verde.
(...)
A grafia é uma forma de petrificação; mais que o desenho ou a fotografia, que têm vida própria. As outras fixações são móveis. A vida do que se grafa fica em fóssil."
Maria Velho da Costa.

agosto 09, 2011

agosto 05, 2011

Missa in Albis.


"'É muito difícil a graduação do amor', recomeçara Sara. (...) - Amados, somos amados, só, sós. Estou tão cansada, imperfeita, imperfeita. Amar da alma alguém, tu sabes. Entre nós, tão profundo é o contrato... não há mais nada, mais ninguém senão a multidão dos outros a espiar-nos como se fôssemos um só, santificado, ou vidente, o núcleo de um painel, sabes.
(...)
Acho que ando distraído, caminho por debaixo de água e nada me toca, a não ser cada obrigação delimitada. Ou tu.
Mas não gostas de mim.
Gosto tal. Mas sempre falei contigo coartado da sedução. Ou esperando que isso fosse sedutor.
Foste o meu primeiro namorado de alma, Martim.
Não, a tua mãe foi, e ainda há traços disso no horror que se têm.
Como tu me ofendes. Ela nunca foi minha amiga.
Deixa lá, um dia a nossa memória disto não será a mesma. Mas digo-te que é matéria muito reservada e que há-de acabar desfeita, se a contam. Não há linguagem para certas inclinações e afinidades. Tudo o que se diz se esgota ou é lateral ou menor que um beijo na face.
É como se estivesses de luto pelo que não vais ser ou me avisasses.
Que devia eu ser?
Alguém que conta. Se a ideia da impossibilidade de contar é a tua resposta ao que eu te conto. Eu acho que vou morrer, Martim. Deus deu-me o Simão porque quer comer de amor a minha vida.
(...)
Porque contar um caso em que fui cada vez mais um confidente desalojado da vida e da memória dela, Sara? A última vez que a vi ainda com alguma saúde já não falámos nada, uma polidez deprimente, sabendo ambos que nem a recriminação mútua faria sentido. Envelhecer é isto, perder o gosto de uma intimidade juvenil que se julgou derradeira.
(...)
Tinha ainda muito dos hábitos confessionais de criança, apesar do ódio explícito. E a mãe ainda conseguia fazê-la chorar da rejeição; foi ali que aprendi que os hábitos do amor são mais duradoiros que o amor. (...) A ignorância, não a crença. Dava-me tempo, não sabendo que também isso forma um hábito.
(...)
'Deixe lá', tratavam-se por você ou a menina, como era de uso em certos meios do meio, firmados na prossecução de um modelo de comportamento feminino em fim de adolescência - reputação, boas maneiras, sedução e bom gosto, ou seja, o gosto de uma minoria preocupada em não cometer audácias, sugerindo-as.
(...)
'Envelheço séculos, às vezes, horrorosa como uma gárgula, uma harpia; como as palavras puxam as palavras e possivelmente as caras, as coisas.
(...)
Sempre amava Martim, mas não era de amor, era... 'De dentro da caixa do peito', disse alto.
(...)
Ninguém fala como é, pensou, nunca dizemos a ninguém que traz consigo assombros e desastres, à primeira vista. O esforço de logo parecer, a bravura mundana, tão inúteis como esta ignomínia de uma inveja de coisas e de uma expectativa de alguém, descoroçoadas de fracassos, incentivadas por pequenas vitórias dentro de uma grande perda. Na massa do sangue.
(...)
Simão disse que a sincronia e a repetição eram de facto o que apaziguava os deuses. Dora levantou-se com o diagnóstico de doutorices, mas Sara pediu-lhe que repetisse, divertida e alarmada.
- Os coros, as rezas públicas, as coincidências, os duetos de ópera, a cantiga que se ouve assobiar na rua síntona com o que nos vai na alma ou noutro sítio igualmente obsceno, não é isso que apazigua, que nos dá  o sentimento de que não há caos, destruição final?
(...)
Não amo a desgraça nem o excesso de graça, mas posso contá-los. Era um salão com lustres e de gente com duzentos milhões, pelo menos, de renda anual em angolares e francos suíços. O meu coração não é duro, porque nesse tempo eu não faria contas dessas. Ao princípio fascinaram-me as relações exemplares. Depois apercebi-me que essa raridade era uma ofensa, como uma desmesurada conta na Suíça e, felizmente, muito mais rara. Os amores únicos e a sua crónica devem ser deixados a escritores menores, os agiotas da ilusão. Ou pervertores de consciências. Ah, se o amor é fulminante e arbitrário, porque não preferir o poder ou a sua prima triste - o conhecimento?"
Maria Velho da Costa.