abril 12, 2016

Quarto-Escuro.


Querida Avó,

O medo ainda mora a duas ruas de tua casa, cantando dentro de mim como um vento nocturno, apressado, cheio de emoção. É sempre difícil amar quando sabemos que a intensidade de uma ausência pode ser tão avassaladora como a intensidade de um encontro. Nos últimos tempos sinto a infância como uma espécie de assombração doce que me faz chorar pelas coisas simples que tinha como adquiridas: um céu azul, uma casa imensa de calor, uns braços que não acabavam nunca. Choro como um velho que não se habituou ainda à ideia que os sentimentos intensos o podem enlouquecer, como uma pessoa que só sabe amar poucos, mas a fundo perdido, entrando no outro como se cai numa rede sem pensar no acontecer que virá daí a segundos. 
Foram quase quarenta dias em que a vida pesou no peito como se viver apesar de ti fosse o maior insulto que se pode cometer ao amor, a um compromisso sem sucessor. Fui-te ver várias vezes ao hospital e, de cada vez que te encontrava, queria acreditar na força consoladora das palavras, numa qualquer energia que combatesse violentamente a doença e te trouxesse de volta a tua casa, de volta a nós. Voltei a usar as noites como em pequeno: as horas em branco serviram para lançar para o céu gestos de súplica, falei sem parar com as mãos agarradas às do Avô, com os olhos postos em qualquer coisa que te fosse buscar ao fundo de ti mesma, não importa o nome desse ritual. Os olhos ardiam num pânico prisional, era preciso pensar e pedir segurança e ignorar a provocação da morte no horizonte. 
Não sabes isto, mas nesses dias de luta não fui capaz de entrar em tua casa, subir as escadas e simplesmente deixar-me ficar. Cada canto da casa, cada objecto, cada retrato mostrariam a fragilidade da vida, a falta de liberdade que a morte de quem é, junto a nós, dentro de nós, por nós sempre traz. É esse o problema do desespero, podemos encontrar rituais que nos deixem mais leves, mais aliviados, mas nunca há nada que o ultrapasse, que o apague, segue em nós como um sangue, escuro, profundo, gelado. Como as palavras ficam sempre aquém do que nos une, voltei ao silêncio. Passei horas pensando em como a ordem das coisas seguia destruída e em como as pessoas são o esteio da nossa própria existência. Não sei viver sem a voz, o cheiro, o toque dos meus velhos que trago dentro de mim imunes à erosão, resgatados à morte, sofro da doença da fidelidade, de só encontrar um sentido para os dias com a presença de quem amo para lá das fronteiras da racionalidade. O Amor é uma homenagem contra a indiferença. 
Escrevo e na minha cabeça a palavra Avó repete-se a si mesma, sem controlo, dezenas, centenas de vezes, como se eu quisesse desenhar o teu corpo, o azul enorme dos teus olhos, a beleza das tuas mãos na tela do mundo e da vida, um recomeço. De cada vez que olhas para mim, Avó, a eternidade acontece dentro do caminho que fazemos juntos, há quase vinte e nove anos. Peço sempre, quando me deito, a quem amo, que apareça, que se sente no muro dos meus sonhos e que me ajude a acreditar. A continuar. Sou um mar de amores impossíveis, de partidas, de murmúrios e preciso de me manter à tona. Avó, enquanto sofrias no quarto do hospital, pedia para morrer um pouco para te deixar respirar, para te manteres agarrada à bóia que sempre foste para todos nós, toda uma vida. Nunca me importei de viver menos anos feliz do que muitos anos sem ninguém, como uma estátua presa no centro de uma cidade qualquer. Chamo os mortos constantemente, acaricio os retratos a sépia como um vício de querer aproximar o bem e afastar o mal. Nada fica resolvido e fechado com a morte. 
Querida Avó, continuo apaixonado por ti e quero-te sempre junto de mim. Quando o coração abana descompassadamente por ti são as mãos da minha vida a abraçar a tua para que as duas façam sentido e componham o texto que segue tremido. Amei-te mesmo antes de saber falar, escrever ou andar de encontro a ti. Quando te visitava naquele quarto cinzento mentia ao teu corpo para que ele se deixasse seduzir pela vida uma e outra vez, para que o teu coração pudesse viver fora dos muros de pedra onde o Avô já está há dezasseis anos. A mentira é uma ferramenta do amor, irmã maior da esperança, tão necessária como o ar para permanecer. É preciso que nos percamos para nos encontrarmos e, por entre corredores, gemidos, rostos apavorados, tentei sempre que o milagre da imortalidade acontecesse mais um dia, mais uma vez. 
O medo ainda mora dentro de mim. Sem atenuantes. E ando meio desalentado. Mas, sem saberes, subi as escadas de tua casa quando já dormias no teu quarto. Sentei-me e chorei. Deixei a minha cabeça descer até ao coração e desaguar nele. Nesse momento soube que entre mim e ti ainda há o prazer da imortalidade feito de palavras, sons, cheiros, pedaços de gente e de lugares mágicos. Soube, enquanto dormias, que ambos buscamos a sobrevivência da melhor forma que sabemos e que nos agarramos ao mesmo antídoto que é a memória da existência do(s) outro(s). É como se no bolso de cada um de nós estivesse um mesmo pedaço de papel dobrado, velhinho, com a morada que só se lerá, um dia, quando abandonarmos a máquina da multidão e voarmos, alto, para lá dos olhos tristes que ainda vejo no espelho. Usei as palavras para te reerguer e usei o silêncio para te acompanhar nessas outras palavras negras que ficaram, felizmente, fora das margens desta história e que, por isso, não contam nada. Avó, para onde fores, eu vou. Sempre. Sou uma pessoa que só sabe amar poucos, mas a fundo perdido, entrando no outro como se cai numa rede sem pensar no acontecer que virá daí a segundos, sabes? É a paisagem que mais aprecio, o horizonte onde cabemos todos juntos como uma família deve permanecer. 
Amo-te mais, hoje, Avó, e sei que sabes disso, da força de um amor que sobrevive, mesmo num quarto(escuro) de hospital. Somos visceralmente um do outro e encontramos na companhia um do outro qualquer coisa sem nome, sem limites, sem paredes de pedra. Para os dias negros que venham temos o papel no bolso e uma morada para onde seguir. Juntos. Num silêncio ritual.