abril 26, 2010

As Ervas Daninhas

"Os grandes medos são mudos."

abril 20, 2010

abril 16, 2010

Avó

Vejo-te por dentro de uns olhos húmidos, intimamente à procura de um sinal de despedida, de saudação. Não quero que vás e, sim, é um egoísmo a que chamo amor, raiva, afecto. Abro-te o coração como tu me abriste o caminho por desvendar, há tanto de ti em mim que te ouço a partir do meu silêncio. Não te fujo, não me foges também. Quando te vejo encostar a cabeça e descansar o azul do teu céu atento, fito em mim por apego invencível, tenho medo e não to confesso - talvez a perda se despiste, passe ao lado desta morada que quero como a vida. As tuas mãos adivinham a ansiedade apertada contra ao peito, os dentes rilham a fatalidade ao meio, a memória adensa-se num rio secreto e chama-se a isto viver, todos os dias. E podia iludir os anos dizendo-te que me tornaste possível e que, desse modo, perpetuaste a tua voz, o teu calor tão obstinado. Podia mas a cara foge para dentro das sensações, a voz é um fio ao vento e não te largo, à procura só de ti. Para quê as palavras, não me dizes? [não digas, abre-me a mão, cobre a minha com a tua paz] És tu neste relâmpago que me queima a garganta, sou pedaço de um todo que reclama o seu lugar, maior, sempre maior, se possível. Azul, imenso.
Caminho, mar ao lado, céu a mergulhar na noite e lembrei-me de ti. "A minha viagem está a chegar ao fim, filho" e não é assim, o medo é a certeza de que preciso do teu corpo, das tuas palavras, do teu caminho a dar força ao meu. A família é a minha terra e é o amor a chamar num silêncio carregado de um cheiro a maresia, intenso como um sinal de um significado que se estende no areal. E não quero ficar sozinho, não me fujas, não, a tua viagem começa todos os dias na esperança que os teus olhos agigantam na magia da partilha. Não há tempo, não há pressa, há uma urgência em permanecer. E os olhos temerosos que embarcam no azul dos teus não vêem a despedida no horizonte. E iludo os anos pensando com o coração a arder que foste também tu que me fizeste crescer, ser para o dentro de tudo. Admiro o sentido dos teus passos, a força da afirmação em que a tua vida se tornou. [É preciso continuar, nunca dizer que não se quer o amanhã] E abres o teu coração cansado e é a tua mão que me acalma, és tu que cabes inteira nesse carinho que agradeço com tudo o que tenho. As palavras, para quê? Azul, amor, imenso.
O teu caminho brilha sobre o medo da noite próxima. Não te deixes ir, não desistas de viver o amor sem pressa, sereno porque certo, branco e livre. E caminharei sempre pela tua estrada, o céu mais perto do teu rosto, tu a voz e a sensação de paz, um sorriso a embalar o meu peito a crescer, abres o teu mundo e deixas-me ficar para lá de um destino certo, de uma despedida que não se anuncia. É preciso nunca dizer que não se quer. Abdicar é morrer por dentro, e tu és sempre possível.

abril 10, 2010

"Ainda acreditamos nos Sonhos."

'Estou emocionado. A emoção é uma confusão de sentimentos que provém das recordações, e recordamos porque temos memória.
(...)
A proximidade de outros jovens sonhadores multiplicava os meus próprios sonhos. Alguns desses sonhos eram heróicos, de longo alcance, outros eram menores, porventura mais domésticos, mais humildes, mais chilenos.
Um deles consistia em arranjar a cópia de uma chave daquele velho casarão, a da Secção infantil da Biblioteca Nacional, entrar sub-repticiamente e passar um fim-de-semana sem mais companhia para além dos livros.
Era um sonho borgeano, nerudiano, rohkiano, ao qual se acrescentavam outros poetas como Machado, León Felipe, García Lorca e os escritores que eu mais lia: Coloane, Yankas (ninguém se lembra dele), Nicomedes Guzmán, Baldomero Lillo, Juan Godoy, Sepúlveda Leyton e outros tantos com quem aprendi que a pátria é muito mais do que uma simples bandeira.
(...)
Sonhava que todos aqueles livros aprisionados queriam falar, que esperam o interlocutor certo, e que esse era eu. Sonhava que os livros me falavam na sua linguagem silenciosa, me mostravam cada uma e todas as palavras impressas nas suas páginas e exigiam de mim uma promessa: a de me transformar no fiel depositário, no zelador, no amoroso protector das palavras. E eu prometia fazer com que nunca perdessem o seu valor intrínseco, a sua capacidade de nomear todas as coisas e, com isso, dar-lhes existência.
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Os meus sonhos são irrenunciáveis, são indomáveis, pertinazes, resistentes e desafiam o horror do pesadelo ditatorial. A defesa desses sonhos tem a ver com o velho combate entre o belo e o horrendo, entre o bem e o mal. no seu sentido mais pleno e intenso.
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Tenho muito mundo, muita estrada debaixo dos pés, e em todos os lugares onde estive ou descobri as marcas de outros sonhadores como nós, encontrei mulheres e homens que são como o próprio prolongamento dos nossos sonhos, porque nós também sonhamos os deles.
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Posso mencionar uns tantos, mas deter-me-ei especialmente num homem que é hoje um venerável ancião. Chama-se Avrom Sutzkever e, na sua casa em Israel, continua a sonhar com esse mundo possível dos justos.
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Tal como anos mais tarde veríamos no Chile, [os judeus] antes de serem fuzilados, tiveram de escavar as suas próprias covas, e quando o fazia, a pá de Avrom Sutzkever cortou uma minhoca em duas metades. Perplexo, reparou que as duas partes continuavam a mexer-se, que aquele golpe mortal da pá, longe de apagar a vida do verme, duplicava-a. Outros dois golpes da pá fenderam em quatro a minhoca, que continuou a mexer-se.
Então, o Poeta resistente Avrom Sutzkever percebeu que se aquela vida tão frágil, tão permeável, insistia em viver era porque a sua natureza lhe indicava que, mesmo que a partissem em infinitas partes, a vida continuaria a ser possível. E decidiu que sobreviveria.
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Se não formos audazes, o que não é sinónimo de irresponsabilidade, se não formos terrivelmente audazes com os nossos sonhos e não acreditarmos neles até os tornar realidade, então os nossos sonhos murcham, morrem, e, com eles, nós também.
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No meu sonho saio de casa numa manhã de chuva, porque gosto das manhãs de chuva em Santiago, porque os dias de chuva obrigam o cidadão a recuperar uma intimidade perdida.
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Depois de comer, falámos, descobrimos que partilhávamos de algo que se denominava inventário das perdas. Abraçámo-nos, chorámos ao relembrar todos os nossos que já não existiam, os que nos faltarão para sempre, os nossos irmãos amados de sonhos, que deram a vida pela envergadura dos seus sonhos.
(...)
A palavra escrita é a grande depositária dos sonhos.'
In "O Poder dos Sonhos" Luís Sepúlveda

abril 09, 2010