março 24, 2013

O Vale da Paixão.

"Sim, tinha chegado a hora do silêncio, o século do silêncio, ele estava a iniciar-se com o ruído da fogueira no descampado, rente ao faval raquítico, nas encostas de arneiro onde assentava o quintal da nossa casa. Onde assenta. O silêncio apontava com o dedo o que iria acontecer, apontava o caminho do futuro da terra. O silêncio dizia que o céu seria assim. Um grande espaço sem nada, onde ninguém teria recordação de nada, onde não haveria ninguém para se lembrar de nada. Nada existiria no céu. Nem desejo, nem dor, nem lembrança de qualquer afeição. O céu seria assim. Os regatos congelados, as nuvens ausentes, assemelhando-se tudo a nada. Seria nada o céu. Que bom o céu ser um espaço aniquilado, o trabalho do homem dispensável, o amor em estado puro, parado. Isso seria o céu. Aqui na terra, ainda não. Ainda nos movíamos como animais, ainda traçávamos estradas, ainda tudo estava em movimento, mais que não fosse para tombarmos e então termos existido antes, depois termos existido muito antes, e por fim, já nem termos existido. Sim, assim seria o céu.
(...)
Mas ela tem quinze anos e é já uma mulher velha. Já imaginou cem mil sóis levantarem-se e outros tantos pousarem, e por isso ela sabe que o novelo está feito, e como uma mulher muito idosa de alma entrevada, ela sabe ficar onde está, sabe que é melhor não entrar. A rapariga velha tem quinze anos no Bilhete de Identidade, mas não é verdade. A rapariga velha é uma mulher muito antiga. Tem um século dentro da cabeça ou talvez mais, tem o início d'Ilíada dentro das pálpebras, tem uma infinidade de mortos aqueus e troianos estendidos na sua língua, tem o fim daquele livro na cabeça e sabe que, há milhares de anos, tudo está amalgamado ao longo de uma praia sob nove camadas de areia. Por isso sabe que não vale a pena dar um passo para mudar, a comédia é a mesma. Correr para diante é ir ao encontro do que ficou para trás.
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Sim, era muito bom, mas a natureza humana repudia a bondade exagerada da Natureza, não confia na estabilidade dela nem acredita que seja seu simulacro, e ela achou que, perante aquela regularidade do azul espampanante do céu e do mar, aquela paz furiosa nascida de uma beleza gritante, era preciso fazer qualquer coisa. Qualquer coisa que rebentasse aquilo que se erguia na sua frente, harmónico e singular, e lembrou-se da noite em que sentira alguma coisa de semelhante, lembrou-se da noite da chuva. Uma mistura de risco minando a beleza, rasgando a beleza suprema, deflagrando-a, e estupidamente, cretinamente, lembrou-se também do revólver Smith.
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Durante a discussão, o que ela quer dizer é que a sua alma, o nicho onde ela se enrola e esconde, onde ela pernoita, onde ela sabe o que sabe e desconhece o que é para desconhecer, esse sempre fora intocável. (...) Essa a sua herança de preservação, a sua coutada real onde só ela caçava, só ela largava os seus cães e apanhava os seus cervos armados.
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Não se pode salvar. Todas as cartas que vier a escrever serão sobre esses objectos mortos que jazem por terra, que estão pendurados das paredes, que estão na rua à chuva, nos buracos luarentos dos palheiros, nas geringonças dos sarilhos dos poços, nos alcatruzes das noras, presa das mortes dos criados e das meninas que nelas se afogam, das avencas que fazem molhos verdes e se confundem com o dorso dos sapos. Está presa do sapo, da salamandra escura de rabo torto, do álamo, do cipreste, do cemitério branco onde os seus antepassados desfizeram os ossos, os seus nomes presos ao solo, antes de desaparecerem nos confins perpendiculares da terra, onde por acaso também está a pedra do Dr. Dalila. Ela está presa ao coração oculto das pedras. Ela nem vai, só regressa.
(...)
Mas sobre o infinitamente insignificante que a sua memória aos pedaços retinha e a passagem do grande resto que era esse infinito oceano exterior deslizando veloz, erguia-se, vigoroso e concreto, o que ela própria amava. Ela sabia desde há muito, que para si mesma, em certas noites de chuva, a história da humanidade era menos importante do que a história do seu pai, por indigno que fosse pensá-lo, quanto mais dizê-lo, ainda que o fizesse em voz baixa. "
In: O Vale da Paixão, Lídia Jorge.