outubro 21, 2011

D. Maria José Nogueira Pinto.

"O Jogo da Glória"*

«L’amour n’est qu’une extrème attention».
Jean-René Huguenin.

"(...) Casámos em 27 de Janeiro de 1972 e a morte separou-nos no dia 6 de Julho de 2011. Líamos escritores franceses. Um dos meus preferidos chamava-se Jean-René Huguenin. Tinha um livro único, La Côte Sauvage, e uma frase de que nós, adolescentes, gostávamos e com a qual concordávamos: «L’amour n’est qu’une extrème attention».
Foi essa extrema atenção que procurámos praticar entre nós e estender à pequena tribo que fomos criando: filhos, netos, amigos. Descobrir, perceber, antecipar o que o outro quer, o que lhe faz falta, o que o vai alegrar. E evitar e prevenir o que o pode magoar ou fazer-lhe mal. A Zezinha tinha essa extrema atenção, até ao pormenor. A nossa amiga Nélida Piñon disse-lhe uma vez: «Você é uma provedora».
Era uma provedora. Organizava os nossos espaços com um amor e uma aplicação inteligentes, pensando-os em função de nós, dos utilizadores. Sempre. Há algum tempo que achávamos o nosso quarto tristonho. Um mês antes de morrer, a Zezinha mudou-o – paredes, cortinas, luzes, tudo. E acabou a decorar um jardim para as crianças, na Quinta.
Mas tinha havido outras ‘atenções’, mais extremas e mais difíceis: a Zezinha nunca discutiu nem pestanejou quando se tratou de me seguir naquilo que eu entendia ser o preço das ideias e da fidelidade a elas.
(...)
Tomava decisões e cumpria-as. Como aqui lembrou o António-Pedro Vasconcelos, não atirava as coisas difíceis para a gaveta. Mesmo nas piores situações, dava a cara. Numa instituição pública onde teve de despedir muitas dezenas de trabalhadores falou com eles um por um, interessou-se pelo seu futuro, procurou ajudá-los quanto pôde. Era assim, provedora e cuidadora.
Numa outra fase deste serviço, veio a política. Não já aquela política ideal da adolescência, de franco-atiradores no terreno, mas a política arte ou ofício do possível, ou da escolha entre inconvenientes.
(...)
As suas ideias políticas iam sempre ter a uma fonte metapolítica – um cristianismo exigente, ortodoxo, onde a letra da lei procurava sempre o espírito do Sermão da Montanha. Não tinha nada a ver com o cristianismo bonzinho e fácil da porta larga, mas ainda menos com o dos que se sentem senhores das portas do Céu e em nome desse senhorio excluem e desprezam os ‘indignos’.
Essa fé viva, animada por uma oração e uma prática constantes, inspirava o seu pensamento social, uma exigência funda de justiça que não era a caridade bem ordenada e doseada dos convidados ociosos da existência, nem a solidariedade dos tecnocratas do ‘combate à exclusão’. (...)"
*Jaime Nogueira Pinto, in Sol,
20 de Julho de 2011.

outubro 10, 2011

Nazaré do Carmo Mesquita.

A minha tia tinha uns olhos azuis do tamanho do mistério das coisas do mundo, ora afiados de curiosidade propulsora, ora quedos a perscrutar da vantagem das opções que lhe vinham cair aos pés, como uma manta bordada de glória e carácter. Sinto uma saudade indizível desses dias mornos passados em redor de uma cumplicidade que pintava as paredes de graça, as janelas de uma tonalidade feliz e me faziam testemunha de qualquer coisa de extraordinário. A minha tia-avó era uma mulher singular e essa pontuação firme nas linhas da sua expressão, essa rugosidade das almas grandiosas, a vertigem do desejo humano, fixei-as eu desde muito pequeno, calado, deixando que o silêncio da contemplação me trouxesse aquilo que hoje sei afagar, por dentro da pele, quando as palavras viram tema, no meu coração. Tenho a massa do corpo revestida de imagens, sons, trejeitos que guardo como a um pequeno tesouro que me orienta neste caminho sinuoso. Sempre a olhei com respeito que é o mesmo que dizer que o amor veio continuamente acompanhado de atenção, de encantamento, de um certo acatamento, até, que nunca se venera sem pudor. Já passaram dois anos desde que me deixou, a minha tia, e a esta distância tudo me parece mais e mais manifesto como uma fé que se agiganta aos pés do inefável. Sempre fui avesso às dinâmicas do conjunto, sempre achei que a morte é factor suficiente para que cada um se inquiete em perdurar, para lá das leis do grupo, mesmo que fantasie um pouco em inspirar, conquistando a atenção, puxando os olhos dos outros para o seu labirinto de sonhos e passos. A tia estava bem no centro dessa afirmação de temperamento, há nos grandes seres uma conquista a partir de dentro, e o lugar dos homens da casa foi cedo assediado pela sua alma, maior do que o pequeno espaço de uma vida, e cresceu tornando-se um elemento de identificação, de semelhança. Certa da imagem que o espelho devolvia, ampliada em brilhos de ouro e de vaidade espontânea, despertou em si a corrente que me seduziu e que é a do desafio. Depois de aceite pela legitimidade de um discurso muito provado, tornou-se aliciante o jogo do confronto, a demarcação de um destino próprio, cheio de aforismos, imperativos e de teimas. São as personalidades polémicas que mudam o mundo, sei-o eu, sabem-no todos, aqueles a quem esse furor que acorda os mortos e os faz sorrir, os amarra a um papel secundário. A tia assaltava os dias com a franqueza que borbulha na massa do sangue e se espalha no mundo através de uma música arcaica, arrancada ao limite das forças do corpo, sempre ao serviço dos olhos da mente. Tenho saudades dessa sua generosidade discreta, sem audiência, em que se certificava que aquilo que a fazia permanecer se transmitia a um mundo que nunca muda, no que é essencial. Antes uma danação tantas vezes experimentada que vira agasalho do que um encontro inelutável com o que surge, frouxa a presença da carne no mundo. Era uma mulher que vivia assente em traves de pedra, com arestas e génio que prescreviam inteligência, destreza no contacto, mas que se abria em sorrisos que abraçavam o corpo intrigado das crianças que sempre quis ter em seu redor, ternurenta até ao fanatismo, calorosa como uma tarde de Agosto, o seu mês, acertadamente. Sempre gostei muito de si, sempre consegui ouvir o seu coração chamar-me, o silêncio é o melhor pano de fundo para a música do amor, onde o desespero se dilui em abraços que adormecem os nervos, circuito dos antepassados, baú de vozes que viajam através dos tempos. Julgo que esse carinho que devotava aos seus preconceitos, às suas convicções como a uma espécie de degraus de um templo em construção, a faziam deliciosamente viva, presente, lúcida, comprometida com o chão da vida e com a marca que queria alcançar. Desde pequeno, quando me sentava ao seu lado, admirando-lhe a elegância luxuosa, nunca lhe notei o que mata tristemente um homem para os deveres da existência e que é o medo, a sua cabeça funcionava num esquema predatório que fazia da morte um credo que se ignora, por instinto. A invulnerabilidade que assustava os fracos e a aproximava dos seus pares fazia-a, aos olhos do mundo ordinário, uma senhora solitária, enredada numa trama de casta, mas é mesmo assim que o segredo do melhor de nós sobrevive, pouco partilhado, sussurrado em jeito de fina ironia. Estava lá eu para a observar, sentada no seu cadeirão, a vigiar o mecanismo do mundo, tilintando os dedos no dorso de tecido, a cronometrar as actividades domésticas, bondosa sem brandura, ciosa das distâncias que conferem segurança ao serviçal e reputação ao dono da casa. Tudo isto se passeia no meu sangue, o braço esquerdo, às vezes, vibra de tensão, a excitação dos mortos renasce a cada passo na minha vida muito virada para dentro de casa, para testemunhar esse milagre da vocação sucessória que se dá com as personalidades de uma família. A tia era protectora dessa missão de levar o nome comum a luzes mais distantes, fazendo-se difícil, a única forma de enganarmos as nossas próprias angústias, rindo do mundo e dos azares das outras criaturas. A uma criada moribunda quis comprar a medalha de ouro da casa que apadrinhou a sua irmã e nisso há uma vontade de bordar com irreverência, de inovar no esquema da vida, achando que se falta, por capricho, ao último acto, a morte. Há uma onda de humor viril em toda a sua passagem por este palco onde sempre quis sentir prazer, mesmo causando achaques, onde não se contentou com o alinhamento da peça, fazendo tropeçar a criada para logo se certificar que ninguém acreditaria. A saudade que lhe devolvo é a prova de que a sua vontade de inventar uma história pessoal a partir de regras estimadas como a um filho permanece na franja dos dias que hão-de vir, subidos das lajes de pedra onde os corpos dos meus antepassados descansam, onde a tia encontrou a morte com uma disciplina de emoções que a manteve digna, até o fim, independente como o são aqueles que interpretam a vida como que precedida de um aviso que lhes abre as portas de um mar terreno, que lhes permite gozar as ondas sem a vertigem do medo sem mais, prevenidos de coragem. "A porta abre-se sozinha para os deixar entrar e eles dizem «aqui estou» como um peregrino com a certeza de ter achado um abrigo", escreveu Agustina, e eu não acrescento mais, seria atropelar o encontro com a grandeza do Homem.

outubro 07, 2011

outubro 03, 2011

Fanatismo*

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

«Tudo no mundo é frágil, tudo passa...»
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
«Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...»
*Florbela Espanca