"O Jogo da Glória"*
«L’amour n’est qu’une extrème attention».
Jean-René Huguenin.
"(...) Casámos em 27 de Janeiro de 1972 e a morte separou-nos no dia 6 de Julho de 2011. Líamos escritores franceses. Um dos meus preferidos chamava-se Jean-René Huguenin. Tinha um livro único, La Côte Sauvage, e uma frase de que nós, adolescentes, gostávamos e com a qual concordávamos: «L’amour n’est qu’une extrème attention».
Foi essa extrema atenção que procurámos praticar entre nós e estender à pequena tribo que fomos criando: filhos, netos, amigos. Descobrir, perceber, antecipar o que o outro quer, o que lhe faz falta, o que o vai alegrar. E evitar e prevenir o que o pode magoar ou fazer-lhe mal. A Zezinha tinha essa extrema atenção, até ao pormenor. A nossa amiga Nélida Piñon disse-lhe uma vez: «Você é uma provedora».
Era uma provedora. Organizava os nossos espaços com um amor e uma aplicação inteligentes, pensando-os em função de nós, dos utilizadores. Sempre. Há algum tempo que achávamos o nosso quarto tristonho. Um mês antes de morrer, a Zezinha mudou-o – paredes, cortinas, luzes, tudo. E acabou a decorar um jardim para as crianças, na Quinta.
Mas tinha havido outras ‘atenções’, mais extremas e mais difíceis: a Zezinha nunca discutiu nem pestanejou quando se tratou de me seguir naquilo que eu entendia ser o preço das ideias e da fidelidade a elas.
(...) Tomava decisões e cumpria-as. Como aqui lembrou o António-Pedro Vasconcelos, não atirava as coisas difíceis para a gaveta. Mesmo nas piores situações, dava a cara. Numa instituição pública onde teve de despedir muitas dezenas de trabalhadores falou com eles um por um, interessou-se pelo seu futuro, procurou ajudá-los quanto pôde. Era assim, provedora e cuidadora.
Numa outra fase deste serviço, veio a política. Não já aquela política ideal da adolescência, de franco-atiradores no terreno, mas a política arte ou ofício do possível, ou da escolha entre inconvenientes.
(...)
As suas ideias políticas iam sempre ter a uma fonte metapolítica – um cristianismo exigente, ortodoxo, onde a letra da lei procurava sempre o espírito do Sermão da Montanha. Não tinha nada a ver com o cristianismo bonzinho e fácil da porta larga, mas ainda menos com o dos que se sentem senhores das portas do Céu e em nome desse senhorio excluem e desprezam os ‘indignos’.
Essa fé viva, animada por uma oração e uma prática constantes, inspirava o seu pensamento social, uma exigência funda de justiça que não era a caridade bem ordenada e doseada dos convidados ociosos da existência, nem a solidariedade dos tecnocratas do ‘combate à exclusão’. (...)"
*Jaime Nogueira Pinto, in Sol,
20 de Julho de 2011.
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