agosto 12, 2011

Missa in Albis [II].


"Então Sara põe-lhe a mão na boca. Está fria e Simão agarra-lhe o pulso. As faces juntam-se e é uma doçura de prodígio que lhe cai da respiração ao ventre, um redemoinho. As telas pulsam cheias de um sangue tingido de fogo e as bocas são como o glóbulo das mãos, o abraço inteiro. 'A alma é isto', pensa Simão e que gostaria de morrer ali. 'Se morrêssemos aqui', diz Sara.
(...)
Sara: Por que me feres? Tenho culpa que haja mundo e outros?
Simão: Entre mim e ti, tens.
(...)
O que parecia desprendimento e até paixão, não era mais que o limiar estremunhado do sono em que sempre viveu, rodeada de espigos da própria pele e de familiares mordazes, igualmente atingidos de um mal na moela do ser mas mais vigorosos.
(...)
Um livro nunca é o pleno terror, como uma cidade pode sê-lo; nem o esplendor de um outro ser amado.
(...)
Bem mais desgraçado é tentar reaver que haver: a honra, os bens, a liberdade. (...) Depois é a noite, Minha Filha, com todos os seus rumores e recrudescer de lembrança, que tal é a simpatia da noite com o intemporal. Assim esta. A noite que tudo altera e onde descaem as máscaras da compostura e as da esperança e todo o caminho andado se volve passagem obscura que para esta mesma noite ameaça. (...) No espelho eu estou de traje civil, e curvo-me sobre o tripé, os contornos difusos, a postura do pedido a que o seu meio-sorriso condescende, que não esse olhar alagado de um susto, que tem sempre, esses olhos de quem não nasceu criança.
(...)
Amar um pouco, que é a amizade e por isso a despeço dos meus hábitos, face ao desastre acarreta sempre a culpa de ter amado de menos. Tão mais tenaz quanto o houver sido a amizade.
(...)
Todos os medíocres possuem o talento da redução à verosimilhança; para a verdade carece o desvio da imaginação.
(...)
'E a beleza é a maior praga', disse o ex-médico, 'Convida-te a morrer.'
(...)
Sara respondeu-me que então só a autobiografia seria lídima e que, tirando Cão, que tinha voltado a comer, só lhe tinha acontecido quem ela tinha inventado.
(...)
A Igreja tem a confissão, que é uma forma de organizar o que digo: peca-se, cochicha-se ao padre e não há que mudar coisa nenhuma do que agrada a Deus, que é o que não muda.
(...)
Mas falar contra o tanto tempo não é abrir a boca. O muito tempo faz de tudo uma invenção. E inventar é sair incólume, pois não é, menina? Quem muito imagina faz-se imaginário e então quem pode assacar-lhe o quê? Tudo é prenda.
(...)
Fomos sujeitos à pedagogia pervertora de uma casta que não perdoa morar nas nossas casas, a proximidade sem mudança de estado: as serviçais. Com o filho do patrão todo o criado é mensageiro da dúvida, iniciador da suspeita que está na origem do conto. Que o conto não é registo, nem os Evangelhos, mas sempre revelação de um poder sobre a paternidade.
(...)
Teodora pensou noutra regra do género: o herói ou é rico, ou casa rico a contragosto com a heroína rica. O romanesco de evasão nunca é de pobres.
(...)
Nunca quis crer que hajam civilizações insondáveis, dominador e dominado é que têm pouco a dizer-se, que do conhecimento vem a estima.
(...)
Quando me perdi de ti, perdi-me de Deus, ou Deus perdeu-se em ti, não sei. Deixei de escutar o milagre, não havia mais essa sintonia iluminada, esses avisos de tudo num delicioso terror, e o Aleixo dizia-me que era um estado humano muito mais conforme, que tu me punhas numa histeria crítica que não tem nada a ver com o catolicismo são. (...) 'Agora sei que esta cara há-de acompanhar-me até ao fim e trespassar todas as outras.'
'O rosto da tua morte', disse Sara, respondendo às carícias, mas triste.
(...)
'Falas com maiúsculas', disse Simão a Sara, 'o Amor, a Justiça, Deus, como é que não te queres sentir defraudada e confusa?'
(...)
E pois que a paixão não é senão uma forma arrebatada de viver o medo, a permanente descrença do lugar em que somos, o objecto dela há-de retaliar da falácia. Oferecer-se a alguém é coagir a harmonia.
(...)
'Menti-te, é verdade. Pesa a minha mentira contra a natureza das tuas omissões. Só o interesse de outros me pode defender do terror de ser aniquilada pela tua perda. O amor que te tenho deixa-me totalmente indefesa, sem pele e sem mobilidade. Esse é o sinal do grande amor, qualquer dúvida torna-se intolerável. Fico suspensa de agonia com certos olhares teus a umas canelas, ou com os que trocas, breves que sejam, com alguém que passa. Um momento de desatenção é um suplício, um atraso é uma agonia de ciúme, e tu não és pontual.
'Preciso então da companhia de alguém a quem ame menos e que me deseje. É o princípio dos vasos comunicantes - fazer preencher o vazio transido que me deixa a dúvida de ti. Não é o que tu fazes alta noite, quando eu não posso seguir os teus passos até esses sítios onde sei que te deitas e me omites?
'Não me digas, como já disseste, que para um homem é diferente, que coisas dessas nada significam. Pois não significam o mesmo? Que te leva a esses excessos, que eu não cometo com ninguém, senão a necessidade de te distanciares das fauces de devoração disto, sempre abertas? A carne humana nunca é só carne, é com a tua alma que vais comprar um comércio carnal que te defenda do amor comigo.
'Somos iguais, a nossa circunstância é que é diferente. A minha defesa de ti está à vista, pelas ruas da amargura, por assim dizer, que crê que o pouco que me acontece ao coração e à mente, longe de ti, é vaidade; a tua processa-se em casas escuras, que por mais que digas de passe não são de passar sem deixar lá alguma coisa de mim, bem física na taquicardia e náusea que me dá ao imaginá-las.'
(...)
Depois me veio a dizer que soube logo, com resignação, que seria eu ou mais ninguém. Que esperara toda a vida e me reconhecera logo, de si, do seu sangue, por isso citara Florbela Espanca, que a impresssionara muito. Pensar que há sentimentos que os livros forjam, filha.
(...)
Ora quem gere os bens sempre se sente autorizado a gerir os afectos.
(...)
Sei pela minha, que a vida e os seus gestos tendem a repetir-se, não em farsa, mas até que alguma tragédia nos liberte delas, farsa e vida. E a verdade é que sem explicação múltipla não há mistério.
(...)
Comentava as montras de próteses: 'O que não se diz do fascismo é que aleija toda a gente, para sempre.'
(...)
Ora Sara decidiu-se a impor a sua expectativa. Para fazer um casamento de razão é preciso ser razoável e não pôr expectativa onde deve apenas haver esperança. Convencida que o que se passava entre ela e Simão era um hábito e um estado de espírito que se logram como uma receita de aspic, um trabalho fino, como as mayonnaises que aprendia com Irene Vizi, aceitou a assiduidade de Aleixo Garcia. Confundiu um acontecimento, oh bem concreto, com o jorrar de uma nascente, com um episódio da construção civil. O casamento é isso, mas ela confundiu-o com o amor.
(...)
Foi com Sara que aprendi que o escrutínio de uma progressão intensifica o prazer, afia os sentidos. Ela fechava-se ali como por dentro de uma obra onde erigia em verde.
(...)
A grafia é uma forma de petrificação; mais que o desenho ou a fotografia, que têm vida própria. As outras fixações são móveis. A vida do que se grafa fica em fóssil."
Maria Velho da Costa.

Sem comentários: