agosto 05, 2011

Missa in Albis.


"'É muito difícil a graduação do amor', recomeçara Sara. (...) - Amados, somos amados, só, sós. Estou tão cansada, imperfeita, imperfeita. Amar da alma alguém, tu sabes. Entre nós, tão profundo é o contrato... não há mais nada, mais ninguém senão a multidão dos outros a espiar-nos como se fôssemos um só, santificado, ou vidente, o núcleo de um painel, sabes.
(...)
Acho que ando distraído, caminho por debaixo de água e nada me toca, a não ser cada obrigação delimitada. Ou tu.
Mas não gostas de mim.
Gosto tal. Mas sempre falei contigo coartado da sedução. Ou esperando que isso fosse sedutor.
Foste o meu primeiro namorado de alma, Martim.
Não, a tua mãe foi, e ainda há traços disso no horror que se têm.
Como tu me ofendes. Ela nunca foi minha amiga.
Deixa lá, um dia a nossa memória disto não será a mesma. Mas digo-te que é matéria muito reservada e que há-de acabar desfeita, se a contam. Não há linguagem para certas inclinações e afinidades. Tudo o que se diz se esgota ou é lateral ou menor que um beijo na face.
É como se estivesses de luto pelo que não vais ser ou me avisasses.
Que devia eu ser?
Alguém que conta. Se a ideia da impossibilidade de contar é a tua resposta ao que eu te conto. Eu acho que vou morrer, Martim. Deus deu-me o Simão porque quer comer de amor a minha vida.
(...)
Porque contar um caso em que fui cada vez mais um confidente desalojado da vida e da memória dela, Sara? A última vez que a vi ainda com alguma saúde já não falámos nada, uma polidez deprimente, sabendo ambos que nem a recriminação mútua faria sentido. Envelhecer é isto, perder o gosto de uma intimidade juvenil que se julgou derradeira.
(...)
Tinha ainda muito dos hábitos confessionais de criança, apesar do ódio explícito. E a mãe ainda conseguia fazê-la chorar da rejeição; foi ali que aprendi que os hábitos do amor são mais duradoiros que o amor. (...) A ignorância, não a crença. Dava-me tempo, não sabendo que também isso forma um hábito.
(...)
'Deixe lá', tratavam-se por você ou a menina, como era de uso em certos meios do meio, firmados na prossecução de um modelo de comportamento feminino em fim de adolescência - reputação, boas maneiras, sedução e bom gosto, ou seja, o gosto de uma minoria preocupada em não cometer audácias, sugerindo-as.
(...)
'Envelheço séculos, às vezes, horrorosa como uma gárgula, uma harpia; como as palavras puxam as palavras e possivelmente as caras, as coisas.
(...)
Sempre amava Martim, mas não era de amor, era... 'De dentro da caixa do peito', disse alto.
(...)
Ninguém fala como é, pensou, nunca dizemos a ninguém que traz consigo assombros e desastres, à primeira vista. O esforço de logo parecer, a bravura mundana, tão inúteis como esta ignomínia de uma inveja de coisas e de uma expectativa de alguém, descoroçoadas de fracassos, incentivadas por pequenas vitórias dentro de uma grande perda. Na massa do sangue.
(...)
Simão disse que a sincronia e a repetição eram de facto o que apaziguava os deuses. Dora levantou-se com o diagnóstico de doutorices, mas Sara pediu-lhe que repetisse, divertida e alarmada.
- Os coros, as rezas públicas, as coincidências, os duetos de ópera, a cantiga que se ouve assobiar na rua síntona com o que nos vai na alma ou noutro sítio igualmente obsceno, não é isso que apazigua, que nos dá  o sentimento de que não há caos, destruição final?
(...)
Não amo a desgraça nem o excesso de graça, mas posso contá-los. Era um salão com lustres e de gente com duzentos milhões, pelo menos, de renda anual em angolares e francos suíços. O meu coração não é duro, porque nesse tempo eu não faria contas dessas. Ao princípio fascinaram-me as relações exemplares. Depois apercebi-me que essa raridade era uma ofensa, como uma desmesurada conta na Suíça e, felizmente, muito mais rara. Os amores únicos e a sua crónica devem ser deixados a escritores menores, os agiotas da ilusão. Ou pervertores de consciências. Ah, se o amor é fulminante e arbitrário, porque não preferir o poder ou a sua prima triste - o conhecimento?"
Maria Velho da Costa.

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