(...) Pero también
la vida nos sujeta porque precisamente
no es como la esperábamos.
Jaime Gil de Biedma.
"Em pequeno com os meus pais era pequeno demais para lembrar-me. Havia Lagos e não me recordo de Lagos, do mar, da minha mãe jovem. Pessoas intemporais passeiam-me vagamente na memória, a figueira sobre o poço oscila ainda os ramos desfocados, a criada do abade, de mãos cruzadas sobre o avental, sorri. Não, espere, o meu irmão caiu um dia ao tanque, debatia-se nos limos, entre os peixes. Comecei a gritar. (...) Às vezes sentava-me nos degraus de pedra do quintal, junto à janela para a rua, e apetecia-me chorar. Sem motivo: chorar. Tinha seis, sete, oito anos, não sei bem. (...) Mesmo hoje me acontece essa comichão na garganta, essa aflição, o corpo de repente tenso, duro, grávido de uma angústia inexplicável. Aos domingos à noite, por exemplo, quando tudo se torna absurdo, ridículo e triste, e me assemelho a uma múmia acocorada no chão da cozinha, à espera, vem-me à ideia o miúdo nos degraus do quintal, repleto de uma melancolia suave e cruel. E no entanto (você nunca entenderá isto) acho que em certo sentido era feliz: não ia morrer, a minha família gostava de mim, assistia ao caseiro a compor as plantas com os grossos dedos inexplicavelmente delicados, compor uma planta como uma estátua viva, de carne. Pétalas, sépalas, estames, troncos direitos, frágeis, de mulher. Quando o avô morreu o Pedro chegou a casa a correr: tinha já quase voz de homem nessa altura e os olhos dele pareciam dois pingos de verniz. Estão a comprar o caixão para um de nós. De facto, apesar do receio do escuro, da minha solidão selvagem e a falta de massa, era feliz. (...) É sábado de manhã e vai chover, pensei. Vai chover o sábado inteiro, monotonamente, a chuva lisa, igual, silenciosa de Maio, leve e melancólica como a recordação do meu avô, de quem me lembro às vezes se estou só, a reconstruir no tecto a frágil arquitectura do passado. É sábado de manhã e um funil de horas desesperantes aguarda-me."
in: Conhecimento do Inferno,
António Lobo Antunes.
1 comentário:
Que lindo*
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