julho 31, 2011

Ao meu Avô.

(...) Pero también
la vida nos sujeta porque precisamente
no es como la esperábamos.
Jaime Gil de Biedma.

"Em pequeno com os meus pais era pequeno demais para lembrar-me. Havia Lagos e não me recordo de Lagos, do mar, da minha mãe jovem. Pessoas intemporais passeiam-me vagamente na memória, a figueira sobre o poço oscila ainda os ramos desfocados, a criada do abade, de mãos cruzadas sobre o avental, sorri. Não, espere, o meu irmão caiu um dia ao tanque, debatia-se nos limos, entre os peixes. Comecei a gritar. (...) Às vezes sentava-me nos degraus de pedra do quintal, junto à janela para a rua, e apetecia-me chorar. Sem motivo: chorar. Tinha seis, sete, oito anos, não sei bem. (...) Mesmo hoje me acontece essa comichão na garganta, essa aflição, o corpo de repente tenso, duro, grávido de uma angústia inexplicável. Aos domingos à noite, por exemplo, quando tudo se torna absurdo, ridículo e triste, e me assemelho a uma múmia acocorada no chão da cozinha, à espera, vem-me à ideia o miúdo nos degraus do quintal, repleto de uma melancolia suave e cruel. E no entanto (você nunca entenderá isto) acho que em certo sentido era feliz: não ia morrer, a minha família gostava de mim, assistia ao caseiro a compor as plantas com os grossos dedos inexplicavelmente delicados, compor uma planta como uma estátua viva, de carne. Pétalas, sépalas, estames, troncos direitos, frágeis, de mulher. Quando o avô morreu o Pedro chegou a casa a correr: tinha já quase voz de homem nessa altura e os olhos dele pareciam dois pingos de verniz. Estão a comprar o caixão para um de nós. De facto, apesar do receio do escuro, da minha solidão selvagem e a falta de massa, era feliz. (...) É sábado de manhã e vai chover, pensei. Vai chover o sábado inteiro, monotonamente, a chuva lisa, igual, silenciosa de Maio, leve e melancólica como a recordação do meu avô, de quem me lembro às vezes se estou só, a reconstruir no tecto a frágil arquitectura do passado. É sábado de manhã e um funil de horas desesperantes aguarda-me."
in: Conhecimento do Inferno,
António Lobo Antunes.