"Havia a Isabel e houvera outras mulheres antes e depois, nos invernos de salitre e vento do Algarve, cor de pedra-pomes, de amêndoa e de oliveira, em que partia de Lisboa possuído de uma angústia misteriosa, da aflição patética das crianças que não conseguem dormir e choram no escuro do quarto de solidão e de pavor, para se instalar em silêncio, frente â lareira, na casa da Quinta da Balaia dos seus pais, como se procurasse nas pinhas e nos troncos a arder o apaziguamento de uma serenidade impossível, porque sempre encontrara nas mulheres, na sua ternura, no seu olhar mudo e na acidez da sua pele, qualquer coisa que não achava sozinho e que constituía como que um indecifrável complemento de si próprio, a fracção de luz, de claridade, de fruto, de jubiloso gosto de laranja que ansiosamente carecia.
(...) Tenho saudades do mar da minha casa do Estoril, que puxava para cima da cabeça para poder dormir, achar-me num húmido cortiço reboante de ecos, coral de membros submersos que se aquietam, tenho saudades do mar do Estoril. (...) Tenho saudades do mar, pensou ele a caminho do mar, do mar de Carcavelos em Janeiro quando os pássaros abandonam na areia molhada sulcos semelhantes a rugas de sorrisos. (...)
Desde a partida da Isabel, da história triste, meses antes, da partida da Isabel, que se acostumara a estar sozinho, sem ajudas, agarrado às crinas da vida com a teimosa força do desespero e da esperança, e sentia-se, por agora, completamente exausto de lutar: queria apenas voltar para casa, fechar a porta à chave sobre o andar sem ninguém, instalar-se à secretária e completar o romance que escrevia, narrativa de guerra desordenada e febril, queria reaprender a pouco e pouco o isolamento, o eco sem resposta dos próprios passos pelo túnel sem fim do corredor. (...)
É - verificou ele enquanto o martini se lhe espalhava, como uma nódoa desagradável, no estômago -, cresci mais depressa do que devia. (...)
Desde sempre o assaltara a impressão de que as coisas o espiavam, as cadeiras, os móveis, os cálices irónicos no aparador, o seu próprio rosto nas fotografias antigas a acusá-lo de uma falta qualquer de que não lograva aperceber-se, que as coisas o espiavam com a severidade de sobrancelhas das suas volutas, a tosse reprovadora dos estalos de madeira, as correntes de relógio de colete das pegas das gavetas. (...) Depois, ao crescer, ganhei o que os adultos chamam «o sentido prático da vida», que fica no fundo o automatismo da inutilidade, e perdi o dom da atenção afectuosa e alarmada das crianças, em que ecoam, como nos sonhos, os enormes passos misturados da alegria e do pavor. (...)
Os psiquiatras são malucos sem graça, repetiu ele, palhaços ricos tiranizando os palhaços pobres dos pacientes com bofetadas de psicoterapias e pastilhas, palhaços ricos enfarinhados do orgulho tolo dos polícias, do orgulho sem generosidade nem nobreza dos polícias, dos donos das cabeças alheias, dos etiquetadores dos sentimentos dos outros: é um obcecado, um fóbico, um fálico, um imaturo, um psicopata: classificam, rotulam, vasculham, remexem, não entendem, assustam-se por não entender e soltam das gengivas em decomposição, das línguas inchadas sujas de coágulos e de crostas, dos lábios arroxeados de livores de azoto, sentenças definitivas e ridículas. O inferno, pensou, são os tratados de Psiquiatria, o inferno é a invenção da loucura pelos médicos, o inferno é esta estupidez de comprimidos, esta incapacidade de amar, esta ausência de esperança, esta pulseira japonesa de esconjurar o romantismo da alma com uma cápsula à noite, uma ampola bebível ao pequeno almoço e a incompreensão de fora para dentro da amargura e do delírio, e se não vou para dentista na mecha fico um maluco tão sórdido e tão sem graça como eles." (...)
Entendi que a solidão, disse ele no automóvel deserto a caminho de Lisboa, não é a marca de bâton num copo no escritório vazio iluminado pelas persianas que a amanhecem, nem a saída de um bar onde deixámos talvez, pendurada na cadeira, a pele de cobra da alegria postiça que se destina a disfarçar a inquietação e o medo: a solidão são as pessoas de pé à minha frente e os seus gestos de pássaros feridos, os seus gestos húmidos e meigos que parecem arrastar-se, como animais moribundos, à procura de uma ajuda impossível. (...) Apetecia-me estar longe da profunda miséria interior das pessoas, da sua fragilidade e do seu medo, apetecia-me adormecer como o bombeiro um sono sem remorsos de menino, e lavar os dentes de manhã num copo de plástico cor-de-rosa com o rato Mickey estampado, sem nenhuma promessa de inferno à minha espera."
António Lobo Antunes
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