"Tinha fome, tinha sono, tinha vontade de urinar mas não podia deitar-se, porque os Luchazes só se deitam a seguir ao crepúsculo e o crepúsculo não vinha: depois do dia do sol seguiu-se o dia dos candeeiros, depois do dia dos candeeiros seguiu-se o dia do sol, e António Miúdo Catolo aproximou-se ansiosamente da janela para aguardar a noite, espiar o azul das primeiras trevas na crista dos telhados, adivinhar as sombras que lhe permitissem estender nos lençóis o corpo exausto, enrolado de cãibras como o dos vitelos fatigados. Os automóveis continuavam sempre a buzinar na rua, vozes subiam constantemente da praça, os anúncios de néon lambiam o peitoril ao ritmo cardíaco das suas línguas roxas, expulsando para muito longe o silêncio do escuro e a paz de crisálida necessária ao sono. Mesmo os pombos permaneciam atentos em redor das estátuas, fixando-o com as bolinhas de vidro acusadoras das pupilas, e ele sentiu-se vigiado pelas almas em pânico dos seus mortos, saídos da terra, sob a forma de pássaros, no intuito de o proibirem de adormecer. António Miúdo Catolo esteve setenta e duas horas em jejum, urinando-se de terror nas calças novas, com o nariz encostado à janela a que se colava um meio-dia sem fim, até a dona da pensão abrir a porta, lhe tocar no ombro com o dedo, e ele escorregar pelo corpo dela até ao soalho, sem uma palavra, e ficar crucificado no capacho à maneira do cadáver de um gato atropelado na estrada.
De modo que anos volvidos, no planalto dos Bundas, após ter apertado a mão a um ministro qualquer, posado para as fotografias do jornal, e regressado ao seu país de rumorosas trevas, ao seu país em guerra de rumorosoas e agitadas trevas, o Muata dos Muatas, livre já do pesadelo de uma cidade diurna, me mirava de viés pasmado da minha ignorância de Lisboa, da estupidez que me vedava o entender que na Europa, nesse idoso e triste continente de catedrais e túmulos, a noite não existe e as pessoas se transformaram, a pouco e pouco, em pálidos espectros ambulantes tropeçando nas ruas à procura de um descanso impossível. (...) - A noite em Lisboa é uma noite inventada - disse eu -, uma noite a fingir. Em Portugal quase tudo, de resto, é a fingir, a gente, as avenidas, as casas, os restaurantes, as lojas, a amizade, o desinteresse, a raiva. Só o medo e a miséria são autênticos, o medo e a miséria dos homens e dos cães."
António Lobo Antunes
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