"Eugénia escapava-lhe porque nada invejava ao corpo nem à mobilidade das paixões; a sua reflexão era ter atenção nos outros e na desigualdade de fortuna, que descobria o semelhante como esquecimento de Deus no mundo. Ela agia como memória do Criador que se manifesta nesse olhar que não pode morrer porque está em causa revelar o outro ser; e só morre quando o salva.
(...)
Nós somos arrastados por tudo o que pode constituir um indício da nossa identidade futura, e isto sem tréguas que dêem pelo nome de dor ou de prazer.
(...)
Mas porque teria Eugénia de adoptar normas tão restritas? Era muito rica, e esse estado proporcionava-lhe a única escapatória possível ao papel que a sociedade pretendia dela, o de esposa e mãe; quando as outras mulheres tinham só como fuga a doença e a incapacidade, de que se valiam mais frequentemente do que se podia supor, ela, Eugénia Viseu, gozava de uma prerrogativa menos lancinante: a fortuna pessoal amassada por três gerações e que lhe caíra no regaço como uma chuva de oiro. Mas as obrigações para com o sistema implicavam um certo número de obediências numa carreira que tinha que identificar-se de qualquer modo com uma forma de praxe tributária. Ela esquivava-se a cumprir com o valor social da maternidade, mas tinha que depor aos pés do médico (que partilhava os interesses do Estado do século XIX e ainda partilha) o seu tributo, que não podia ser outro senão a enfermidade; e esta tanto mais terrível quanto Eugénia queria liquidar a sua dívida para com a sociedade que lhe pedia contas, mesmo quando lhe pedia bênçãos.
(...)
Comiam frente a frente, e os grandes espelhos da sala multiplicavam as imagens duma gente educada mas não sensível. Esse traço europeu, de quem protege a cultura como um investimento mas não a associa ao espírito, incomodava-a.
(...)
Assim, [Eugénia] acostumou-se à dor como a um alimento de que tirava forças e uma espécie de fome sagrada por nova provocação. Sabia que não ficaria muito tempo sem ser instada pela dor e sem lhe prestar culto. (...) Maria Leocádia escreveu uma série de apontamentos que se referiam à Malhada e recebeu de Eugénia algumas confidências, aproveitando da solidão mesquinha que a enfermidade produz; e que faz a alma cair em desespero, que é humilhar-se julgando só praticar exercício de memória. (...) A dor era um idioma afinado para conversar com todo esse tempo com o qual ele [João Trindade] tinha um contrato para sempre.
(...)
João Mendes era um liberal, mas um liberal impossível. O sentido do segredo, que preside ao movimento dos partidos, ele não o tinha. Ele vivia na actualidade pura, participando com o presente e o ausente, coabitando com o contrário, participando, em suma. Este ideal de vida, que exprime uma filosofia que não se reporta às ideias que o próprio concebe, impedia João Mendes de ocupar um cargo, de receber uma mercê. Tudo nele era amor de justiça e, portanto, humildade, que é a metafísica do democrata. Ocupou-se da causa popular enquanto ela tinha relação directa com essa fé que a matéria reúne como explicação de uma coisa comum. Mas nunca fez da popularidade uma escalada, nem do triunfo uma aspiração.
(...)
Mas ninguém se apaixona por alguém só porque é belo. É preciso pressentir o perigo da beleza para admitir a salvação que o perigo engendra. A beleza tem uma componente de tragédia, que desloca todo o optimismo do coração humano. A sua realidade manifesta, o seu inventário conduz ao sentimento de perda que descreve a morte. Quando se ama alguém muito belo é porque esse alguém se situa no hemisfério humilde do que está condenado. O amor é uma compensação de tudo o que vai morrer. Não que morrer seja injusto; mas é inesperado, porque interrompe a perfeição dos homens. A morte é justa porque se atribui ao segredo profundo do ser; mas é um mistério constrangedor porque nos retira toda a possibilidade de participação.
(...)
Escolhia o pobre como área afectiva porque ela própria se sentia pobre e sem qualquer refúgio para o seu padecimento íntimo. O século XIX inventou o pobre, como o tempo de Constantino inventou a Santa Cruz - como uma proeza de instalação no negativo que reverte a favor dum poder. Dependente do efeito sobre a imaginação, esse poder, a partir de certo momento histórico, não dissimula mais o pobre. Ele está violentamente presente como imagem visual, já privilegiada na filosofia grega, imagem e espaço visual capazes de contratar a imaginação a poucos custos. A aparência visível do pobre não tem uma única dimensão; ela faz aparecer sombras e reflexos que dão ao sentido comum das pessoas o sentido duma unidade no mundo. O pobre é como um espelho que contém tantas imagens quantas as que nele projectamos. Para Eugénia Viseu, o pobre era a presença que ela própria se atribuía, sem ponto de perfeição que a acabasse e que mostrava quanto essa perfeição é inatingível.
(...)
Ela pensa, erradamente, que o amor destrói a ameaça. O amor só é provável quando, como a oração, ele pretende abater a ordem e produzir o milagre; porque a plasticidade do mundo depende do que parece real.
(...)
Um sinal de luto profundo é o abandono do lugar onde se vive e se têm recordações. Há tribos muito primitivas que conhecem esse regime para se libertarem da substância dum sentimento doloroso. Começam por queimar a casa e todos os objectos do morto e, se isso não basta, partem para longe e iniciam nova vida. (...) Ele não abolia o luto porque o luto era a realidade da sua existência.
Sem comentários:
Enviar um comentário