"Não saberei nunca
dizer adeus."
Mia Couto.
Fomos visitar a Avó. A praça adormecia de uma tarde alta, densas as cortinas de um céu vertical a procurar as lajes polidas do chão. Não estavas em casa e não quisemos subir. Ficámos mais de uma hora atentos à curva da estrada, ao rumor de cortejo dos carros, expectantes, debruçados sobre uma esperança inspirada até ao fundo. Toda a nossa vida foi isto: folhear com o sangue um roteiro, crivar num soalho um bordado que se assemelha a um rosto, a um lume imune às irregularidades da campanha. Sempre tu, Avô, descido até aqui para me ensinar que é no decalque dos escombros que se descobre a força primeira, a lição que nos reconquista para a vida, mais uma vez.
O tempo de espera, sentados sobre o quase sono da rua, semeou uma curva no meu espírito que me levou até à infância, uma paisagem que por outra paisagem se espraia, um desígnio que brilha mais forte, dentro de tudo. Como a Avó demorava, sem sabermos onde estaria, senti o meu peito falar a linguagem do chão, a angústia a silvar-me nos ouvidos como um bicho assustado. Esse bicho sou eu. Acho que nasci para abraçar a morte dos que amo, antes das últimas rimas do caminho, como uma defesa, uma aprendizagem que me possa poupá-los a saber como trabalha o infinito. É um sofrimento, uma causa, vivo numa dor intermitente que se anuncia quando a campainha soa a uma cratera na sorte, quando nos teus olhos registo que os dias vividos serão forçosamente a possibilidade de um deserto na morada onde te espero, em breve. Sempre quis acreditar no coração e aprendi convosco essa devoção que ignora o que é fictício, essa sedução pela perseverança, pela cega permanência que me afaga o olfacto numa insónia, quando abraço os objectos num corredor da casa que desagua em frente ao grande espelho dourado dos bisavós. É a memória que constrói o futuro, os teus oitenta anos são uma escrita explícita.
Creio que nestes vinte e quatro anos sempre julguei o tempo presente refém desse fluxo que desenha umas costas em tudo e que o homem real deve reter experiências e acontecimentos que a sua tribo, espécie de tela inelutável de tudo, a sua massa sanguínea faz circular em diálogo, não sendo a educação mais do que um trabalho minucioso, paciente de chamamento para a tarefa incondicional de provedores de uma constelação de valores, imagens e medidas. Educar alguém é ser artesão da sua própria imortalidade, expectando no nascimento das crianças uma promessa de devoção absoluta, robusta e corajosa, podendo-se amar na escuridão da morte com as passadas subterrâneas de quem nunca deixa de ser essencial. Eu e o meu irmão sempre encontrámos na família a espessura certa para regular os batimentos do coração e também a energia de uma ideologia, um debate-prefácio sobre as condições da existência do homem: o amor a cada um e ao grupo que nos prende as mãos ilumina o mundo como ingrediente racional e visceral, espontâneo e acicatado, fundamental e silencioso, somos todos aprendizes do melhor de nós mesmos.
O meu Avô faz-me falta em cada pedaço de tempo e essa descoberta da carne dorida há doze anos fez da memória um espaço de observação, de fundação e ressurgimento, onde são amplas as janelas e o calor, apesar da ventania da saudade, há dias em que a gangrena vermelha levanta voo, para longe, e o medo deixa de ser uma infiltração no fundo das costas, esmagando o coração. Avó, enquanto te espero, sinto-me como desde sempre, necessitado desses olhos azuis que capturaram o sonho e que me trazem o Avô como um poema primaveril, fugindo da objectividade inútil de limites geométricos, correndo eu para um lugar cheio de sempre.
Fevereiro foi um mês em que o sol se inclinou até à vertigem, como no dia em que morreste e eu te escrevi com um desespero enorme, a porta por onde saíam as palavras, estreita, cega, precipício para tudo o que queria manter, alimentar. Este ano voltei para ti, fui ter contigo ao lugar onde cumpriste noventa e dois anos, o silêncio estruturante do destino, da conversa dos homens, a terra por onde as mãos se procuram sempre. A Avó chegou, sentou-se connosco um pouco, as suas longas mãos começaram a repetir a história, a reparar e a rapará-la como só ela sabe fazer numa dança em que o presente é tempo de escuta, de interiorização, de restauro. Com a inteligência em redor dos afectos, a manta de flores que cobre a família torna-se numa astronomia que desafia o fim do nosso mundo e nos convida a aceitar aqueles que nos olham com carinho, do outro lado da madrugada que sempre chega.
No fundo do meu medo compulsivo, por baixo da calçada e das ruas da cidade, há um convite que é dirigido a todos, diariamente: essa espécie de santidade onde caem os corpos dos mortos e as suas vozes, deve fazer de nós cúmplices da passagem do vento, convictos seguidores de traços, trejeitos, expressões e aspirações, pois a recordação é uma música que veste as manhãs e nos ensina a falar com e como quem agora escuta. E sorri, porque no amor é sempre cedo, há sempre mistério. Hei-de ir passear contigo ao campo, eu bem o sinto e tu sorris dessa minha fidelidade ao destino das coisas.
No fundo do meu medo compulsivo, por baixo da calçada e das ruas da cidade, há um convite que é dirigido a todos, diariamente: essa espécie de santidade onde caem os corpos dos mortos e as suas vozes, deve fazer de nós cúmplices da passagem do vento, convictos seguidores de traços, trejeitos, expressões e aspirações, pois a recordação é uma música que veste as manhãs e nos ensina a falar com e como quem agora escuta. E sorri, porque no amor é sempre cedo, há sempre mistério. Hei-de ir passear contigo ao campo, eu bem o sinto e tu sorris dessa minha fidelidade ao destino das coisas.