Para a (minha) Gó.
"Na verdade, não era de subestimar a influência das velhas criadas. Mais antigas nas casas do que velhas em anos, as velhas criadas - como, noutra escala, as velhas meninas - eram respeitadas pela sua influência, pela confiança de que gozavam, pelo acesso fácil à intimidade das senhoras e à confidência dos meninos chegados à idade dos primeiros sobressaltos amorosos. Tinham vindo do campo - e dizia-se do campo quer se tratasse de uma aldeia piscatória ou de um lugar perdido nas montanhas - quando contavam doze ou treze anos, com o objectivo de cuidar das crianças que começavam a andar e requeriam uma vigilância atenta e paciente. Eram, no mais autêntico sentido da palavra, criadas: tinham crescido ao lado dos meninos da casa, partilhando das suas brincadeiras, aprendido regras de educação e de convívio; sabiam pôr uma mesa com inexcedível rigor e utilizar todos os talheres com acerto e propriedade; haviam participado das alegrias, dos lutos e das viagens da família, acompanhado os meninos ao colégio, confeccionado os preciosos doces conventuais que eram tradição das casas madeirenses, rejubilado com a boa sorte dos senhores ou chorado com a sua má fortuna. E quando, porventura, voltavam ao campo para o funeral dum avô ou para a cabeceira da mãe doente, cedo se saciava a saudade da família, dos vizinhos e do lugar e logo lhes apetecia o regresso à cidade, ao quartinho do sótão, à tagarelice das companheiras, à autoridade sobre os trabalhos domésticos, aos desabafos das senhoras, aos bilhetinhos das meninas e dos seus namoros.
Algumas das velhas criadas casavam, trocavam o lugar de mando e confiança pela oportunidade de terem a sua própria casa quando ainda dispunham de tempo para gerar meia dúzia de filhos. Recebiam a bênção e as prendas dos senhores, transformavam-se em costureiras ou mulheres-a-dias, continuavam a frequentar as casas e a partilhar da vida das famílias. Outras mantinham-se solteiras, perenemente, eternamente à margem da vida, ouvindo contar experiências e desastres, venturas e decepções, guardando tudo tão vivo e tão forte que, com o decorrer dos anos, chegavam a pensar que haviam protagonizado, dum certo modo indirecto mas não menos marcante, cada um dos eventos. (...)"
In: O Último Cais, Helena Marques.