janeiro 21, 2013

O Vale da Paixão.

"Só dispúnhamos de uma única, aquela noite de chuva, e termos a certeza de que estávamos a correr dentro dela, sem a podermos repetir, impedia-nos de a viver.
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Os anjos sempre teriam tido saudade da noite em que foram animais, e as bestas sempre hão-de sonhar com o dia fulgurante em que terão caçado a criação inteira, na sua efígie de anjos. Não havia solução para essa dupla saudade.
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Mas ela queria dizer que havia objectos que não desapareciam, que apenas deixavam de ser matéria e de ter peso para passarem a ser lembrança. Passavam a ser fluido imaterial, a entrar e a sair do corpo imaterial da pessoa, a incorporar-se na circulação do sangue e nas cavernas da memória, para aí ficarem alojados no fundo da vida, persistindo ao lado dela, e naquela noite, bastaria aproximar o candeeiro a petróleo do corpo da filha, em camisa, e agasalhada pela colcha, para confirmar como esses objectos se encontravam morando dentro da sua cabeça.
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Na noite da chuva, já ela sabia que a vida não pertencia apenas a quem pertencia, mas também a quem a relatava. E que a vida de Walter não era só dele, era de muitos porque em Valmares todos a imaginavam e relatavam o que imaginavam. Walter também existia nos outros e cada um tinha um pedaço dele, um pedaço de que falavam com gosto, como se Walter inteiro lhes pertencesse.
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E a vergonha, na criação de obediência, era um sentimento imprescindível em todos os tempos, principalmente nos diligentes anos trinta.
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Pertencia ao grupo dos que desconhecem que existe um intervalo entre o acto e o ser, um espaço indomável que ninguém alcança e que transforma cada homem na matéria humana.
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Custódio tinha a coragem própria dos que perderam tudo ainda antes de terem começado as batalhas e amava o irmão, aquele que tinha a parte que a si mesmo faltava. Era como se viesse a caminho a outra metade de si. Por ele, Walter voltaria já.
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Herdei a vivência rumorosa do que sucedeu antes do silêncio. Tornei-me herdeira da imagem dum amor, duma paixão envolvida no seu desencontro, e no entanto alta. Essa imagem atravessa o silêncio de muitos anos, dez, vinte, trinta anos, depois, o carro, que sempre se desloca sobre essa película fina, chega e pára, envolto em silêncio. Um aconchegado fantasma. Maria Ema e Walter vêm dentro dele. Embora eu saiba que nunca viajaram sós. Provam-nos os retratos de Kodak."
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Era culpada, responsável, duma responsabilidade mais funda do que a culpa, porque nascida dum estado criado antes de mim mesma, uma condição herdada que me fizera à imagem e semelhança da própria culpa."
In: "O Vale da Paixão, Lídia Jorge.

janeiro 07, 2013

O Prémio.

 
" - Os meios para transformar a realidade são os terramotos, a iniciativa privada, as instituições internacionais, o Estado, o Cinema e a Literatura. Em Espanha, a iniciativa privada no campo da economia, a política e a sociedade civil constituem três vias miseráveis, inoperantes e mentecaptas. Talvez seja por isso que eu me dedico cada vez mais à literatura, não porque ela modifique a realidade mas porque a substitui por outra, a bel-prazer do autor; daí o financiamento do Prémio Lázaro Conesal. (...)
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Já não servimos para comprovar as regras do jogo mas, pelo contrário, servimos como matéria de catarse nos altares purificadores de um sistema triunfalista que quer ir pelo mundo de cabeça muito alta. É muito divertido que o capitalismo, sem inimigos, descubra que os seus inimigos são os capitalistas. Qualquer coisa de parecido com o que se passou com o comunismo."
In: O Prémio, Manuel Vázquez Montalbán.