"O que se vê nunca se pode narrar com rigor. As palavras são caleidoscópios onde as coisas se transformam noutras coisas. As palavras não têm cor - por isso permanecem quando as cores desmaiam.
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A voz de um homem desbravando a fé nas palavras, fazendo de cada palavra uma catapulta, um forno, um berço, um gesto de reconstrução do mundo. Um céu partido ao meio no meio da tarde, um céu despenhado, pedra a pedra, da voz deste homem.
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É verdade que o amor cega, paralisa, entorpece - mas apenas para tudo o que não é o amor. E tudo o que não é o amor é o mal do mundo. Não vale nada.
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Vieira não precisava de nada nem de ninguém. No fundo, acho que lhe bastava a consciência de que tinha Deus dentro de si - ou a eternidade, ou o conhecimento, como preferires.
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Mas eu vejo tão pouca eternidade nos sonhos das pessoas, Sebastião. A eternidade que somos conduzidos a aspirar é a da juventude - o lugar mais rápido, inseguro e variável da existência humana. O lugar do querer ser. Não vês o contra-senso que isto representa? A violência? A prisão?
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- Utilizavam a arte como uma escada de acesso ao céu. O sucesso era então uma medida celeste. (...) Alguém acrescenta que a arte seria então a expressão máxima do amor, e nisto uma voz potente declara: «Definir-se e arder, isso é amar.»
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(O calor: carícia dos mortos que muito - e quase sempre mal - amámos. Mortos que não soubemos ainda arrefecer, e ardem lentamente à superfície da nossa pele. Ardemos com eles, as palavras somem-se no fogo da pele, papel que torna espessa a tinta do coração. Não há amor imediato: o desejo transtorna a verdade, cai como chuva sobre o sangue, dissolvendo-lhe o tempo de onde vem e o espaço para onde vai. Não se consegue amar completamente senão na memória, Sebastião. As histórias que sonhámos para as pessoas amadas flutuam na neblina dos dias muito quentes, como mentiras leves tocadas pelo peso da verdade. Espuma do mar desfeita ao toque dos dedos. Não te canses a inventar-me no desejo do teu corpo, Sebastião, que o que em mim crês amar não é mais do que a memória das lágrimas, das tuas lágrimas, feitas de uma luz distinta das minhas.)
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O prazer que se pode dar acalma as tempestades humanas; mas o prazer que se recebe e guarda nunca mais nos deixa serenar.
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Peço que me injectem imagens em catadupa, as igrejas e ruas e estátuas em que os que têm o sentido da visão se distraem das visões que os dominam. Mas não posso escolher. A cegueira obriga-me a ver o que é meu.
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A princípio faltavam-me as palavras. Nunca encontrava as palavras certas, por isso experimentava escrever poemas: acreditava que a arquitectura do verso geraria as palavras de que eu precisava, palavras com um mecanismo de relógio tão poderoso que estancasse o tempo. Essas palavras capazes de boiar sobre esse mar de morte que é o tempo, encontrei-as nos teus textos, Vieira - cordas de frases resistindo às intempéries e a si mesmas. Assim desisti dos rituais da poesia, fiz profissão de estudar as palavras do outros - mas ralhavas-me sempre, António Vieira, puxavas-me as orelhas, não sei se pela minha desistência, se pela minha insistência nas palavras dos outros.
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A coragem é o ponto de exclamação da vaidade, à qual a compaixão faz de vírgula - os pecados de que desististe por amor a esse Deus que inventaste para não morrer, sublimaste-os a todos na vaidade. A luxúria, a cobiça, até a vontade de poder , a que hoje chamamos sucesso, tudo desfizeste e engoliste no caldeirão frugal da vaidade.
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Digo-te que onde há seres humanos, há prisões.
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Querido amigo; perdoa se te usei como um mapa para encontrar o meu caminho - mas não são isso os amigos?
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- Como se pode falar de alma sem falar de Deus? - pergunta-me Emanuel, enquanto me acaricia e eu canto ao seu ouvido aquela canção em que Caetano define a pele como a parte mais clara da alma. De tudo se pode falar sem falar de Deus. Como de tudo se pode falar enquanto se fala de Deus. Foi o que fez António Vieira.
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Como tu, aprecio esse privilégio supremo do viajante que é o de participar da banalidade quotidiana sem lhe sentir o peso - porque não é sua.
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Sebastião, o horrível desistiu de ser rival do belo, deixou de ser o antibelo. Ambos se fundem, ambos se fundiram sempre - mesmo quando não o queremos ver: são um só ser hermafrodita. Em todo o horrível há um grito pelo belo. No belo o único grito que se ouve - e não é grito, é um lamento em surdina - é pela morte: a morte que o apagará em definitivo, a morte que é a melancolia da sua ausência. O desaparecimento da ideia do belo resulta da sua politização: a beleza em si foi desprezada em favor de uma beleza ética, que muitas vezes se impõe através das imagens contrastantes do horrível - ou mesmo, nos seus momentos mais intensos, de uma beleza épica, que ressuscita sempre nos lugares e momentos de tragédia. Esta beleza épica relaciona-se com o sublime, beleza extrema que, na sua extrema intensidade, se torna dor, vazio, o terrível emudecido. O horrível pelo horrível torna-se infantil, habitual, insignificante, do mesmo modo que o belo pelo belo se torna frustrante.
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Precisa mesmo de se despedir desse Sebastião? Para quê carregar essa nossa curta existência com despedidas? Ninguém sabe despedir-se de nada - não inventamos a eternidade para evitarmos as despedidas?
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Talvez um dia morras, e eu não saiba - e isso significa apenas que te continuarei amando vivo, e que viverás em mim enquanto eu viver. É essa a imortalidade em que acredito. (...)"
In: A Eternidade e o Desejo,
Inês Pedrosa.