O dia escorre para o seu fim como um caminho há muito conhecido e desde sempre percorrido, em silêncio. O céu incendeia-se numa morte dramática, num fogo que desagua na noite onde os corpos se despem, se enfrentam, se escutam. É nestes momentos, no fim das coisas, no fim da linha branca da realidade que procuro o som para aquilo que hás-de ser, não estando aqui, do meu lado. Desde que foste que a memória joga com o coração uma espécie de sequestro do porvir, um contágio das promessas pelas palavras que escorrem dentro da saudade com que os meus olhos inundam as horas que ficaram depois de ti.
Desde muito pequenos, nos dias quentes de Verão na Meia Praia, esse deserto amplo onde a liberdade sopra até ao fundo de cada um de nós, eu e o meu irmão caminhamos juntos, unidos por gestos, palavras, dúvidas e abraços que o tempo não dissolve à procura do que não tem nome mas que dói e pesa, uma espécie de impossibilidade que se pressente mas não se aceita, uma paisagem que ainda não se vê mas fura os olhos do amor como uma noite sem estrelas. Lembro com saudade essa vida onde o despontar da melancolia era ainda suportável, onde as perdas se conjugavam com um tempo longínquo, do outro lado do mar, do outro lado da infância. Marcávamos o chão com passos que valiam como questões, ambos sabíamos que era a morte dos nossos que nos desenhava a pressa de amarmos, dizermos, corrermos para o colo do Avós, da Gó, dessas pessoas que cultivaram os baldios do nosso coração como anjos de uma carne quente, forte, incondicionalmente cosida com a nossa para todos os mistérios do caminho.
Meu Avô, a verdade é que, hoje, depois de não ter consigo evitar a tua partida, quando, à noite, pedia a um Deus que não conhecia bem, que descontasse na minha estrada os quilómetros que sem ti seriam um excesso de realidade a pender de um corpo dorido, exausto, ainda me acompanhas em tudo e em todas as horas de uma estrada mais sinuosa, outonal, espinhosa. Não sei viver com o teu desaparecimento e a devastação do passado não acontece tão imediatamente porque na ardósia da escola eu escrevo o teu nome, o nome dos Bisavós, a tua idade, datas em que te sabia seres do tempo de cá, vasculho a casa muda, abro armários, remexo nos cantos de todas as gavetas da memória para preservar o perfume do teu abraço, a humanidade da tua acção, os traços da tua velhice que sempre me comoveram.
Quando converso com a Avó, quando enlaçamos as mãos e os sentimentos acusam uma filiação evidente, percebo com ela que a geometria da vida breve nada tem a ver com a vastidão que o amor pode pintar numa janela, a casa de pedra onde tu também já foste criança, infinita como a esperança que peço como remédio para este quadro vazio que se pendura na mesma parede onde ontem tinha sete, oito, nove anos e as composições falavam todas de umas escadas do tamanho da imaginação, onde só se somava e multiplicava os contornos do habitual, um amor imune aos medos que se tornam em abismos profundos. Chego sempre a ti, é de ti que parto quando a luz que nos sonhos me mostras coincide com a manhã lá fora, invisível a tua presença nos meus passos, sentida como um batimento de dois corações que se tornam um por absoluta necessidade um do outro. Sei que a Avó sente o lume dos meus olhos afogados nos retratos, nos instantes que roubámos à morte e que, em silêncio, choramos ainda hoje o não saber roer amarras e deixar-te partir, dissipando-te no verde dos teus campos, somos ambos teimosos e queremos ser o asilo que acolhe a tua morte, os teus quase noventa e cinco anos de vida, queremos ser o teu coração sepultado, o lugar onde descansas, o escuro onde as flores não precisem de chorar por nós.
Nasci amando o que não conheci senão pelo que sinto desse mundo anterior a mim e que em mim se revela cada vez mais, num espelho de ressonâncias e de ressurgimento. Sou o que és em mim e o que não podes ser mais, como um dever de expressão que se cumpre por um aluno sentimentalmente motivado, apaixonado pelas gentes de vento e mar que reencontro no areal das praias que sempre fizeram parte do meu caminho de procura. Ouço o mar, vejo marcas de passos à minha frente, coloco os meus pés na pele molhada da areia que cedeu porque tu passaste. Tu, Avô, tu, irmão, um de vocês disse-me qual era o caminho onde todos nos encontrámos, um postal de uma morada feliz. Hoje encontro-me sozinho nos contornos de um corpo onde mora muita gente feita da mesma espuma que a fuga do mar sempre desenha na face do mundo.
Avô, nada do que é teu te vou devolver nesta vida, não vou ceder ao lugar onde os mortos caem por terra, encarcerados num esquecimento imerecido. O teu lugar é no meu coração, vivo, misterioso, curioso e não num soalho triste de solidão campal. Peço-te, quando falo contigo, que não te esqueças de nós, que esperes por nós na esquina da tua rua, olhando a janela do meu quarto, na madrugada em que te sinto por perto, num envelhecimento ao contrário, num chamamento que um dia se cumprirá. Rezo todos os dias para que a morte me leve, ouvindo fado, e que a letra desse destino se acerte com o que te calhou. Quero muito voltar a ver-te, aí, ali, onde se escondem as cinco da tarde de uma infância em que me pagavas pela mão e me bordavas um sorriso no rosto, uns olhos iguais aos teus para eu saber sempre ver-te e ver-me quando me perco no vento do Verão que sempre me confundiu. Procuro-te em cada frase, em cada livro que abro, em cada esquina onde julgo poder decifrar a linguagem que a morte escreveu na minha vida, o trabalho durará motivado por um amor definitivo, impositivo, convoco-te para as ruas do meu destino fazendo de tudo para que um dia, quando eu morrer, me venhas com o teu carinho dizer que a nossa família não se perdeu no labirinto do esquecimento, que os meus mortos olham por mim e têm saudades, um nome onde cabe tudo o que corre como um rio, espelho de um mistério maior.
Espera por mim. O mundo onde vivemos é redondo e eu caminho sempre, seguindo os passos que ao ouvido me dizes serem o destino dos que nas sombras pesadas pregadas no chão descobrem ainda o espelho de um corpo que dança no sangue do amor.