"Estou em silêncio há tanto tempo, que não sei como quebrar a barreira entre mim e os outros.
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Sim, a sedução é um jogo, não de verdade ou mentira, mas de ataque e defesa, por esta ordem. E de escândalo. Forçosamente é preciso escandalizar, puxar a realidade das coisas até um limite qualquer e, depois, ver como tudo corre, como é que se aguentam.
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Uma coisa é verdade, apesar das diferenças, éramos uns dos outros: Jaime na arte, Lourenço na política, escrevendo nos jornais e nos blogues, Sofia salvando o mundo. Um dos sentimentos que me animavam era a união entre os quatro. Pertencíamos uns aos outros. Sem qualquer dogma. Podíamos conversar sobre tudo e disparatar como as crianças. Até a maldade era desculpável. Possuíamos um registo que nos tornava diferentes. Gostava dessa ideia, de sermos o tudo e o nada uns dos outros, cruzando a vida de outras pessoas, mas regressando àquela base de afecto e confiança. Não falávamos sobre a nossa relação; sabíamos que era distinta e que, no meio por onde circulávamos, era tema de conversa. Não nos importávamos.
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Eram dados invulgarmente exóticos para a maioria. Eu gostava de os coleccionar. Dava-me gozo saber coisas estranhas. Era esse tipo de homem: coleccionador de realidades que, em sociedade, me serviam para arrancar uma gargalhada, um apoio espontâneo, uma dose reforçada de superioridade intelectual.
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Interrompia leituras para fazer releituras. Sou um grande adepto das segundas e terceiras leituras. Uma leitura aos vinte anos não é a mesma que aos trinta anos. A culpa é da personagem que é demasiado rica ou do leitor que se transfigura no tempo? A pergunta serviu de mote a tantos jantares.
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O azul estava mais perto da bondade.
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Ser doente é ter um refúgio.
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A beleza, como a arte, era contemplativa. Perante uma mulher bonita, eu nunca esperei nada. Bastava-me olhar. Quando se dava o acaso de encontrar uma mulher assim e inteligente, rejubilava. A beleza, não sendo essencial, é um grande carinho que a natureza nos proporciona. Eu não era imune a esta comoção.
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É fundamental deixar de pensar. (...) Desde o início que há um pacto. As palavras podem ser bem-vindas, mas podem, com a mesma força, ser desnecessárias. Uma das características de Pedro, venho a perceber com o tempo, é a economia de gestos e palavras. Nunca mais do que o essencial para concretizar o seu próximo passo enquanto sobrevivente.
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Tudo é um mistério por ora e confesso-te que não sei nada. Nem de mim, nem dos outros. Se leres isto, um dia, Sofia, quero que saibas que te amo. Sempre te amei. Mais do que qualquer outra. mais do que a ninguém. Não te rias ao ler estas linhas, tem um pouco de compaixão. Controla os teus impulsos, sim? A amizade é um amor transfigurador e potente. É uma arma. Sentes isso? Eu sinto. Quando te conheci, percebi-te de imediato. Acho que ficámos transparentes: um a ver a essência do outro. E depois segue-se a vida.
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Todos os truques que pregámos à vida viraram-se contra nós. Numa ironia qualquer que não entendo, eu - o mais fraco de todos vocês - fiquei no silêncio da casa dos meus pais a pensar nestas coisas. E escrevo, escrevo para não perder a razão. Ou talvez seja o contrário. (...) O escritor escreve para si, dizia eu aos meus autores. É uma mentira, sempre o soube. O escritor escreve como forma de exibicionismo. É único quando se agiganta no palco da escrita e vislumbra chegar à grande interrogação. Todos os bons romances são interrogações, não achas? Sobre o destino, sobre a fatalidade, a sorte e o azar. São a consciência do tempo no momento em que o tempo decorre, como uma veia a pulsar. Os romancistas são exactamente isso: medidores do tempo, das ideias, dos receios e expectativas do seu tempo. São contemporâneos, mesmo que alheados dos outros, porque não têm qualquer escudo protector, são comidos e mastigados pela vida e colocam tudo por escrito.
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Estou tão sozinha que oiço o meu corpo a envelhecer.
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Às vezes, a dor é tão grande, que o coração adormece. O coração deixa de bombear sangue, deixa de ser central no organismo, opta por se calar, passa a ser comandado pela dor.
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Os livros têm música lá dentro, quanto mais os lemos mais entramos neles, colam-se à nossa pele e fazem da voz o que querem. (...) Os livros têm essa magia, fazem viver as coisas. O leitor percorre as mesma estradas que ele seguiu, encara realidades, redescobre um sentido de humanidade.
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Não era feliz, pois não?
Não, Pedro, nunca foi feliz. Ela dizia que não possuía essa vocação. Eu acredito que Sofia se limitou a deixar-se arrastar, com uma eficácia tremenda, para o lado mais triste da vida. "
in Por este Mundo Acima, Patrícia Reis.