setembro 01, 2016

Barroco Tropical.


"Sou uma estrela, dizem. E acho que é verdade: sou uma estrela, sim -ardo! Depois virá uma explosão e morrerei. Na minha morte arrastarei comigo, para dentro do meu próprio abismo, tudo o que me rodeia, inclusive a luz. A luz inteira. Por enquanto sou uma estrela. Acontece-me, quando estou quase a adormecer, naquele território de fronteira em que ainda sabemos quem somos, ou julgamos saber, mas em que já não conseguimos abrir os olhos, acontece-me sonhar que voltei a ser uma pessoa, e torno a experimentar sentimentos e a rir e a chorar. Sonho que amo, e que sou amada. Sinto o assombro e a alegria dos amantes correspondidos. 
(...)
Acho que o amor é o inverso da morte. 
(...)
Não tenho passado. Pode procurar à vontade, senhor jornalista, não encontrará nada. Nem uma cidade natal, nem amigos de infância. Nada! Nada de nada! Nasço nos palcos, noite sim, noite não, e às vezes noite sim, noite sim, e no final morro nos palcos. Não existo fora dos palcos. Não existo nas noites em que não canto. 
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Fui feliz com ela e suspeito que nunca a conheci. Teria sido feliz se realmente a tivesse conhecido? Penso nisso o tempo todo. 
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Quando a minha mulher me perguntou o que se passava fui sincero.Há muitos anos que não havia entre nós nada que se parecesse com sinceridade. Sinceridade é quase amor. 
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- O Ramiro não gosta de falar com estranhos. 
- Compreendo. O problema é que para ele todos nós somos estranhos, certo? Todas as pessoas...
- E o senhor não concorda? Somos todos estranhos uns em relação aos outros. Podemos usar as mesmas palavras mas não falamos a mesma língua. 
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Luanda corre a toda a velocidade em direcção ao Grande Desastre. Oito milhões de pessoas aos uivos, aos choros e às gargalhadas. Uma festa. Uma tragédia. Tudo o que pode acontecer acontece aqui. O que não pode acontecer, acontece igualmente. Estamos no século XXI. Estamos lá muito atrás. Estamos mergulhados na luz. Estamos afundados no obscurantismo e na miséria. Somos incrivelmente ricos. Produzimos metade dos diamantes vendidos no mundo. Temos ouro, cobre, minerais raros, florestas por explorar e água que não acaba mais. Morremos de fome, de malária, de cólera, de diarreia, de doença do sono, de vírus vindos do futuro, uns, e outros de um passado sem nome. 
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Voltando ao princípio. Esta é uma das vantagens da literatura em relação à vida: podemos sempre voltar ao princípio. 
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Sabe, sou uma colecção de personalidades - mas não somos todos?
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Em Portugal já quase não há labregos. As aldeias foram abandonadas. Os sotaques regionais extinguem-se lentamente. Suponho que O Orgulho Grego seja uma das últimas tascas portuguesas no mundo. Em Lisboa desapareceram todas, como resultado da lamentável extinção dos labregos, é claro, mas sobretudo devido à insensibilidade dos legisladores europeus, que para protegerem a saúde dos consumidores não hesitam em retirar, literalmente, o sal à vida. Hoje os europeus têm muita saúde, mas sentem-se mortos. São mortos muitíssimo saudáveis. Nós, pelo contrário, padecemos dos mais diversos males, e morremos muito, morremos constantemente, mas vamo-nos embora com a barriga cheia. Saber viver é saber morrer. 
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Habituei-me a pensar no meu marido não como quem pensa numa pessoa mas como quem pensa num lugar. Os lugares são estáveis. Estão lá sempre. Lulu era a minha cidade natal, a casa dos meus pais, as paisagens da minha infância, um sólido cais de pedra, um porto de abrigo capaz de me proteger nas tempestades. 
(...)
Sou aparentada com tudo quanto escurece. 
Uma estrela, dizes?
Pode ser. As noites estão cheias de estrelas e no entanto vê como são escuras. O brilho das estrelas não ilumina caminho algum. 
(...)
Devíamos poder morrer temporariamente, como quem vai de férias. Não, não como quem dorme! Como quem dorme, não! Não digas disparates. Dormir é viver sem a opressão da consciência, e às vezes nem isso. Em sonhos também sofremos com remorsos. Também temos medo de morrer. Também adormecemos. Também morremos. Eu queria morrer de verdade, deixar de existir, de forma a que durante algum tempo tudo fosse nada. Nada em mim e à minha volta. Eu flutuando no infinito nada. 
(...)
Julgas que não o amo, ao escritor?
Amo-o tanto que não o quero infeliz comigo. Quero salvá-lo de mim. Sou como um mar que rejeitasse os seus afogados. (...) Os homens repetem-se no amor. Repetem-se em tudo. São animais monótonos e estúpidos. 
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Nas igrejas, ao menos aqui em Angola, é comum as pessoas dirigirem-se em voz alta às imagens de Cristo, da Virgem Maria, de qualquer santo, rogando, implorando ou mesmo censurando-Os. Ninguém acha isso estranho. As imagens estão lá, afinal de contas, como uma espécie de telefone público para o além. Um telefone público só com bocal, sem auricular. As pessoas podem interrogar as imagens, mas não têm direito a escutar as respostas. Quem se dirige a Deus é devoto; quem afirma ouvir a voz de Deus é maluco. Eu não sou nem devota nem maluca. Falo contigo para fingir que não estou a falar comigo. 
O vazio, tu sabes. O vazio e                         O que vem a seguir não tem nome. 
(...)
- O evidente mente - repete às gargalhadas. Luca gosta de jogos de palavras. Nem sempre acerta. - Se queres encontrar a luz procura-a na escuridão. 
(...)
- Li os seus livros. Há anjos em todos eles.
. Disparate!
- Sim, há anjos em todos eles. Não estou a dizer que você acredita em anjos. Estou a dizer que você gostaria de acreditar. Simpatiza com a ideia. Eu também não acredito, claro. Mas interesso-me por tudo em que não consigo acreditar. 
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Disse-me Deus:
A vida começa com lágrimas.
A vida termina com lágrimas. 
(...)
O futuro é a solidão por estrear. 
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Era como um sonho, mas sem a escuridão dos sonhos. Todos os sonhos são escuros.  Mesmo quando têm luz, são escuros nas margens, não achas? Os meus são. 
(...)
Escrevo para iluminar os corredores da minha alma. (...) Além disso, é verdade: conheço bem a luz que dorme em certas palavras, a noite que se esconde noutras. Há metáforas que deflagram como granadas, estrofes capazes de abrir clarões à nossa frente. Já me aconteceu ter cantado os mesmos versos centenas de vezes sem os compreender. Então, de repente, num palco qualquer, o Bozar, em Bruxelas, o Finlândia Hall, em Helsínquia, o Koninklijk Theater Carré, em Amesterdão, num palco qualquer, aquela mesma canção acende-se e revela-se: abre-se, como uma porta, para um mundo de cuja existência nem suspeitava. Quando me sinto perdida sento-me e escrevo. Quando estou irremediavelmente perdida, canto.
Canto para me salvar. 
(...)
- Perguntar é pensar, menina, e quem pensa acaba sempre a contestar. Ninguém quer pensadores neste país. 
(...)
Aborrece-me que Deus não permita viver um acontecimento tão importante quanto a morte senão uma única vez -  e ainda por cima sem direito a ensaios. 
(...)
Na dor voltamos a ser crianças. 
(...)
Kianda era uma alma indomável  e talvez por isso nos fascinasse tanto, a nós, almas domésticas e domesticadas. O mesmo fascínio, o mesmo medo que os povos sedentários sentem em relação aos nómadas. 
(...)
- Tenho de conseguir compreender. Acho que só serei capaz de perdoar o que ela nos fez depois de conseguir compreender. (...)
- Você tem razão - disse-lhe. - Perdoar é compreender. 
(...)
Eu sabia que estava a sonhar. Sabia que o cão não era autêntico. Contudo, sentia medo. O cão talvez fosse produto da minha fantasia, mas o meu medo era real. Enquanto o sonho avançava eu pensava nisto: em como os sentimentos são sempre autênticos, mesmo quando tudo o resto é inteiramente falso. 
Nunca saberemos se existe quem amamos. 
Mas sabemos que o amor existe. 
(...)
Há quem confunda a alegria com a felicidade. A alegria não se parece com a felicidade, a não ser na medida em que um mar agitado se parece com um mar plácido. A água é a mesma, apenas isso. A alegria resulta de um entorpecimento do espírito, a felicidade de uma iluminação momentânea. O álcool pode levar-nos à alegria - ou um cigarro de liamba, ou um novo amor - porque nos obscurece temporariamente a inteligência. A alegria, pois, tende a ser burra. A felicidade é outra coisa. Não ri às gargalhadas. Não se anuncia com fogo-de-artifício. Não faz estremecer estádios. Raras são as vezes em que nos apercebemos da felicidade no momento em que somos felizes. Eu fui feliz - nos meus últimos dias - em clarões de assombro. Relâmpagos de lucidez extrema, de absoluta comunhão com os meus músicos, o público, as palavras que saíam dos meus lábios."