junho 23, 2009

Runaway Train


O comboio desliza pelo tapete quente da paisagem, as janelas abrem-se para recebê-la melhor. Foi há quase um ano e essa memória chega até mim com cheiro a saudade, o lume do sol aquece-me a vontade de reviver tudo. Era uma tarde como outra qualquer se não fosse essa viagem em torno de mim a transfigurar os significados e a fazer-me pensar.
Recordo perfeitamente essa linha de despedida, um último olhar sobre a cidade abraçada ao mar e esse cheiro a verão atlântico feito de uma transpiração marítima, azul, que gosto de sentir todos os anos, desde que me conheço. O desenho daquela tarde - chegou o Verão - brilha no fio do horizonte e apeteceu-me correr atrás dele como sempre fazemos com o passado, com os dias em que fomos felizes.
Ali sentado soube dançar na vibração do calor e as ondas dessa pulsão febril trouxeram-me uma paz simples, espontânea. Lembro-me de sentir o meu corpo aberto a essa natureza estival e de pensar que o prazer se esconde sempre em lugares próximos à distância de um olhar mais atento. As nuvens de um branco infantil, o ocre da terra seca e a imensidão da água bastaram-me. Não sentia a falta de nada, não lembrava ninguém, restringi a existência à fruição sensorial de um quadro de luz.
O comboio cantava o caminho com uma voz sibilante naquela ondulação de carruagem velha que nos embala - sempre me senti assim - numa liberdade sem igual, nós e o nosso mundo num itinerário sem fim. Não me lembro de mais nada, não guardei outra certeza que não a de saber ser assim mais um em harmonia, de sentir-me uno e enraizado só por olhar com mais força para esse privilégio que é estar-se vivo, no mundo. Respirar fundo e guardar cá dentro os odores dos sítios onde a tua história se desdobra como uma onda na areia fina do litoral.
Talvez as palavras saibam a pouco, talvez, mas parece que a vida é como um poema de versos dispersos no espaço e que a melhor imagem para o que vamos sendo é a de uma geografia variada e intransmíssivel como os lugares de uma longa linha de comboio. Se calhar é isso: desde sempre, ao parar num ponto de uma linha férrea deserta, imagino o que estará para lá do ponto que a poeira aperta e de onde virá esse silvo estridente, cada vez mais próximo. Ao fechar os olhos e ao multiplicar pelo infinito esse movimento acabo sempre por ver pessoas num vaivém de descoberta, uma amálgama de sentidos cruzados num pano de fundo comum.
Do Verão passado vários fragmentos ficaram presos em mim mas aquele caminho sob um sol tórrido apenas amortecido pela frescura do mar fez-me pensar e sobretudo sentir uma profunda conciliação como dois pólos que finalmente se acertam na sua diferença irredutível - o fogo brilha à tona de um azul sólido e parece haver nessa união uma promessa de possibilidade mesmo que, para isso, tenhamos que fechar os olhos e mergulhar sozinhos na luz desse mar por descobrir.

'Evadir-me, esquecer-me, regressar
(...)
E ao grande vento límpido do mar.'

Sophia