Caminha em direcção ao mar. No escuro da noite o ressoar das marés parece embalar como se uma certa melancolia se dissipasse melhor nessa hipnose do corpo e dos sentidos. Sente a areia arrefecida debaixo dos seus pés, o murmúrio do vento morno na sua face e um cheiro forte a intimidade como quem se dedica a dedilhar a dor para se acostumar a ela. Era um ritual seu esse de abandonar o mundo no começo desse passadiço de madeira clara com as suas tábuas de salvação separadas pela vontade de avançar. Havia nessas caminhadas solitárias uma certa conciliação que não era amor-próprio mas um estagnar das perguntas a boiar nos lados da cabeça, um enquistamento justo.
Sentia o seu corpo tomar a estrada do costume, descer a rua de paralelos gastos e de árvores estafadas desse verão inflamado rumo à praia das suas conversas interiores. Há cenários para cada estado de alma, pensava. Sabia não ser capaz de escapar a essa massa de irresoluções, de não sentir a sua vida sempre entregue às perguntas que durante o dia via assomarem na cara dos transeuntes, na falsa publicidade quotidiana virada do avesso pelo seu realismo antropológico.
Se se dedicava a observar a paisagem humana nos caminhos da sua cidade sabia ser certo vir a sentir aquela pancada que avisa estar próximo o ponto de interrogação, negro, descomunal, afirmativo. Quando se apercebia de que há questões tão ensimesmadas no seu complexo corpo voltava a olhar em seu redor. Do outro lado do passeio passava um velho no seu passo lento como que para travar a morte que sabe ser certa e ele, que o via de um banco do jardim, não conseguiu deixar de notar que aquele corpo, aquele relevo brilhante das pequenas mãos trémulas eram um testemunho. Uma existência curta para uma vida longa, era afinal o maior aforismo.
A ele que fazia da observação um lugar de reflexão parecia-lhe francamente absurdo que o corpo cedesse quando dentro de cada um há finalmente barro humano de experiências e provas, gesso de memórias a amortecer o vazio - morrer-se velho é morrer-se na praia.
Ao ouvir o compasso do mar a seus pés gostava de imaginar poder segurar as pessoas num movimento perpétuo de chegada, gostava de poder sabê-las sempre ali no escuro da vida. A noite são as ausências. Fechou os olhos e lembrou-se do seu avô e de como sentia falta desses dias claros da infância alimentados unicamente pela energia dos afectos. Sentia ser a idade um refúgio para se aceitar melhor as despedidas mas não conseguia acatar tal improviso: há buracos onde cabemos inteiros. Perdera a noção do tempo nesse lugar da vida onde somos maiores pela mão dos outros, pela entrega que nos fazem no silêncio desse milagre que é o amor. Essa mesma mão trémula nessa mesma sombra de uma cidade preguiçosa.
Chegou a essa praia como se chega a um lugar familiar: há uma sensação de sermos observados pelos sons, cheiros e circunstâncias da primeira visita e de sabermos ser irrepetível esse toque inicial, essa macia verdade em formação. Nessa noite a lua dançava no imenso espelho negro do mar e ele quis fazer o mesmo com as suas inquietações para que desse movimento o cansaço se fizesse maior, absoluto. Não conseguia esquecer o velho sozinho no cruzamento, não podia. A sua face nomeava a própria condição humana e os seus absurdos mais aguçados - como despedir-se do mundo à porta do fim quando a nossa casa fica no sentido contrário? Olhava em frente mas via com a memória a apontar o cerco do início da caminhada.
Não havia resposta que vencesse a suprema verdade dos factos mas ele resistia através da lembrança, através da recusa ao abandono. Não esquecia o velho, o seu e aquele outro, porque nunca açaimou a humanidade que lhe vai por dentro. Daquela vez não conseguiu apaziguar-se e entendeu, por fim, que viver é também sofrer e que isso se faz para escorar as paredes da nossa casa, para permanecer irremediavelmente ligado às pegadas no caminho que fazemos de cor, aquele que nos ensinaram e nos traz até aqui, hoje. Trata-se, sobretudo, de gratidão, de sentirmos sempre intensa e incólume a verdade da vida apoiada nesse abraço sem tempo e lugares.
Caminha até à praia e detém-se defronte ao passadiço suspenso na noite. Vai continuar porque sabe que, do outro lado, está o velho que caminhava pela mesma rua, há mais tempo.