Uma manta negra espreguiça-se até ser engolida pelo horizonte, despenha-se num incêndio veloz. Daqui de cima, no viaduto, sinto a vibração do absurdo convidar-me a descer e a fazer parte do espectáculo. A pista segue completamente plana, colada à terra, a força de milhares de apressados submete-a, apodera-se para dominar - lá à frente, de súbito, os automóveis perdem-se de vista, num sentido único. Observo a pintura que, a espaços absolutamente regulares, anima o chão de passagem. Aqui em cima tudo parece ridiculamente pequeno, frágil como se o caos estivesse a segundos de engolir a sinalética ordenada e cuspisse o inesperado, a desconstrução do esquema planeado. Seguro. O mundo é de borracha e ela não pára, imprime a banda sonora da actualidade, prende-nos num paradoxo que desliza pela planície. Como um intruso? Onde a massa transparente dos silêncios? Imagino esta manta cosida, um só tinteiro de branco espesso cravado bem a meio da imagem risível, trágica. Gosto de pensar daqui de cima, de gritar de olhos presos à vertigem em alerta. Os cidadãos auto-mobilizados inquietam-se com as distâncias por detrás dos números e, por isso, são surdos para os desvios, o sentido único implica uma dinâmica de 120, que diabo. Continuo cá em cima agarrado aos ",76" que ficaram entalados, quem sabe, por olharem para aqui. A maioria persiste, porém, fascinada com os minúsculos sinais brancos, com o seu intervalo regra bem ao jeito da estatística, do programa de computador. Se o traço fosse contínuo, digo eu, o absurdo não saltaria tanto à vista, de faixa para faixa.
Há 10 meses
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