novembro 07, 2009

"Os Amantes do Possível" por EPC


O leitor que abre o mais recente romance de Inês Pedrosa (intitulado "Fazes-me Falta" e editado nas Publicações Dom Quixote) depara com um dispositivo narrativo de extrema simplicidade: duas vozes apenas, que, ao longo de cinquenta blocos textuais, a que, pela sua episódica brevidade, não chegaremos a chamar capítulos, se cruzam numa espécie de diálogo espectral. Uma dessas vozes é feminina, e é a ela que cabe a iniciativa de convocar os temas. A outra voz, a que viremos a saber que é mais velha, pertence a um homem. Poderíamos pensar, segundo as convenções da leitura para que estamos preparados, que entre estas duas personagens existe sobretudo uma ralação passional. Mas aquilo que as une é de uma outra ordem - e de certo modo o livro não faz mais do que ir à procura do nome exacto para essa ordem, o nome apropriado para esse tecido de palavras que une, enreda e compromete, envolve estas duas vozes. De um modo esquemático, dir-se-ia, como a própria Inês sugere, que se trata de uma relação de amizade. E de que o que a Inês Pedrosa pretende é relançar a energia ficcional da amizade, habitualmente relegada, no campo dos afectos romanescos, para um lugar secundário.
Mas neste ponto descobrimos que o que está em jogo é mais do que uma inversão de pregnâncias e cotações. Não é de amizade nem de amor que se trata. Mas de um processo mais complexo e desconcertante em que estamos para lá da amizade e do amor, num espaço de infinita sexualização pela pura e também impura ausência de corpos, numa espécie de invenção impossível a que apenas se pode dar o nome de Deus. Porque, se Deus é também uma personagem deste texto, é precisamente deste modo, como designação de um lugar concebível em que se deixam para trás as etiquetas do amor e da amizade e onde se pode encontrar o eixo definitivo em que dois seres se precipitam interminavelmente um para dentro do outro (seja na distância, seja na discórdia, seja no absurdo da separação, ou no equívoco das peripécias do quotidiano). O que é dito na dobra de uma página desse livro deslumbrante que é "The End of the Affair" de Graham Greene: "People can love without seeing each other can't they?" - perguntava Sarah, depois de ter desistido de ti para te salvar. Ou de Maurice, é a mesma coisa. Podemos amar no escuro, sim, podemos amar na luz sonâmbula da ausência, podemos tanto que inventamos Deus. Tu dizias que Deus era a tua personagem de ficção favorito. Mas não querias entender que as personagens de ficção existem tanto como tu."
Deus ou o Possível. E o Possível é aqui enunciado à maneira de Musil, numa idêntica distribuição de peso e realidade entre o que aconteceu e o que não chegou a acontecer, mas nos acompanha sempre como o outro lado, a face ciciada do que aconteceu. Por isso a voz masculina irá caracterizar-se pela sua lentíssima queda no espaço do Possível: "deslizaste para o território musiliano do 'homem do possível', aquele para o qual tudo o que existe, visível ou invisível, tem a mesma gravidade." E é isto, esta vagarosa implicação de duas vozes na dimensão divina do Possível, que permite que este livro exista. Porque ela, a voz feminina acaba de morrer, e continua a falar como se essa mudança de estatuto fosse apenas uma prega, um simples vinco, no imenso tecido do ser onde os seres se encontram, desencontram e reencontram, num jogo sem regras definitivas nem fronteiras estáveis, e onde os mortos são somente as figuras tutelares que definem o espaço onde os vivos se deslocam: "talvez não haja idades. Só mortos ressoando pelos canais do Tempo, mortos que, como ímanes, aproximam e afastam os que ainda não morreram. Tu trazias tantos mortos na sombra do teu sorriso." E por isso se pode dizer que "Deus é uma conspiração de mortos contra a amnésia dos vivos."
O imenso mérito deste terceiro romance de Inês Pedrosa - que é sem dúvida o seu melhor livro, e desde já um dos romances mais importantes e apaixonantes publicados este ano - reside no facto de a Inês ter sabido construir sem a menor transigência um mecanismo narrativo extremamente original, e ter sabido dar-lhe o desenvolvimento adequado, quer na construção das figuras que o povoam (algumas personagens menores em torno do entre-dois dos narradores), quer na forma como desfia cenas de grande nitidez e visualidade. Mas esta experiência literária não é apenas um trabalho de laboratório. O que a Inês escreve é algo que procura forçar os muros da realidade, procura derrubar as convenções e as gramáticas, procura ser político no sentido mais radical do termo, na medida em que pretende fazer existir aquilo que começa por existir apenas nas palavras em que essa pretensão se formula. Se as duas vozes, a dela e a dele, a feminina e a masculina, se respondem e dialogam não apenas na memória do que aconteceu de amizade e cumplicidade, mas também na exaltação do que de amor não chegou a acontecer, é apenas porque ao longo de todo o livro procuram que um espaço de serenidade se institua: um espaço onde o possível e o real, a amizade e o amor, o sexo e a ausência de sexo, a presença e a ausência, a morte e a vida, se tornem transparentes, comunicáveis, transbordantes e divinos.
Mas se o livro da Inês tem o espantoso mérito de ser ele mesmo a experiência viva do que descreve, seria um erro supor que se trata de uma galeria de sombras empenhadas na abstracção de um projecto metafísico. É verdade que neste livro, se quisermos utilizar uma terminologia banal, "não acontece nada", a não ser o acontecimento de um improvável e incorporal diálogo, mas isso é apenas porque tudo aconteceu antes e nada do que aconteceu antes pôde acontecer sem que fosse ao mesmo tempo a repetição, a antecipação de tudo o que poderia ter acontecido. Mas estes "corpos cintilantes da vida potencial" convivem com o que há de mais activo e concreto na concreta realidade portuguesa. Ele vem de uma guerra em África e de alguma corrosão de ideais. Ela parte de uma ânsia desmedida de mudar o mundo e reequilibrar a relação entre homens e mulheres. Ele atravessa casamentos e histórias sentimentais sem muito lastro nem melodia. Ela percorre as múltiplas figuras da paixão para se centrar naquela que talvez menos a mereça. "Saiu e deixou-me na cama, o homem que Deus mandou para me matar." Cada um tropeça em ambiciosos, linfáticos, oportunistas, manipuladores e "analfabetos sentimentais". Cada um experimenta as decepções do "amor amarrotado." Ela lança-se nas formas mais impiedosas e burocráticas da actividade partidária e do envolvimento político até perceber até que ponto se desfigura e amarfanha. Procura então entender as razões do Mal, onde nasce e prospera a violência, que impede os seres de se ajoelharem em compaixão recíproca, onde habita o crime e os homens se despedaçam numa carnificina sem nome: obceca-a a o sofrimento das mulheres, a desatenção dos homens, as crianças desamparadas, a dor uivada até ao sangue e à violação. Em páginas admiráveis (mas todo o livro é prodigiosamente bem escrito) a Inês fala da morte lentíssima das crianças e do sofrimento inominável - essa violência abjecta que leva um ser humano, não a querer morrer, mas a "não querer viver" : nem a rapariga que nesse instante pára o automóvel sobre a ponte 25 de Abril e se atira para o cimento negro do rio quer morrer - quer apenas parar de viver, o que não é a mesma coisa." Daí que as duas personagens sejam seres empenhados, desesperados, mordazes e ferozes, coloridos e eloquentes, ele envelhecido e sempre em busca do "dia envelhível", ela solar e luminosa, cheirando a "rosas, canela e sexo." E todas as restantes personagens são figuras expansivas e sintomáticas da sociedade portuguesa contemporânea.
A questão essencial com que todos se confrontam tem precisamente a ver com esta relação entre uma amizade que se transfigura na enloquecida brancura do desejo ("Precisei de morrer para te desejar, precisei de morrer para ver a cor do desejo, que é branca, branca e irreparável, como tu, como nós dois) e um amor que se dissolve na sufocação de um aquário: "Quando fazíamos amor, não era o tempo que parava. Nós é que estávamos mortos, infinitamente mortos, boiando um dentro do outro num azul sem céu nem gravidade." O lugar do Possível que o nome de Deus sinaliza seria aquele onde evitaríamos a corrupção do tocar ("tudo o que tocamos se desfaz") sem deixarmos de viver nessa tangência irreprimível de cada um ficar cada vez mais dentro do outro - tão perto, tão perto, que só um outro lugar o permitiria conceber. Como diria Caeiro do rio da sua aldeia: "quem está ao pé dele está só ao pé dele." E é a voz dela que vai deixar a palavra positiva: "Estou à tua espera num sítio onde as palavras já não magoam, não ferem, não sobram nem faltam. Esse sítio existe."
Eduardo Prado Coelho, Público, Mil Folhas, 27 de Abril de 2002

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