maio 08, 2010

Avô,

O teu nome confunde-se com o mundo que chega aos meus olhos. És sempre tu em cada pedaço de tempo registado dentro de mim [pela tua mão]. A ausência é um espaço de dor quase física, há uma promessa que se ergue ao sabor das cinzas, ao vento. É uma voz que te segreda os absurdos da vida de dentro para fora, a tua cabeça confunde-se e a minha também. O coração sente a tua presença, a tua sombra de acolhimento, o teu cheiro a infinito e liberta as palavras, liberta-me os olhos para uma inundação daquilo que ficou e fica sempre por dizer quando se ama. E agora a linguagem é uma coisa interna, visceral, enlouquecida quando passeio as tuas lembranças junto à ferida que a saudade alimenta com verdade. Não te sei fazer existir de outro modo, não consigo entregar-te ao passado com a naturalidade de uma não-emoção - é por seres tanto para mim que não morres absurdamente, engolido pela tua terra, pelo teu cansaço.
Faz-se o homem no seu caminho para casa, faz-se maior por saber quem o espera num ritual que desenvolve a expectativa de um afecto continuado, de uma voz que é sentido e sentimento num fluxo único. O teu nome, as tuas mãos. Trago-te comigo no avesso dos dias apressados, em noites em que o espírito se encontra a sós com a sua companhia. O meu mundo chega-me aos olhos vindo do fundo da minha carne, ressurge a espaços para esmagar o vazio da angústia que, como um vento que não cala a morte, me consome, intermitente num céu de aviso. Nunca te poderei dizer que o acumularem-se os dias me faz ser liso como uma pauta de aprendiz, não volto ao princípio, as tréguas são sempre prospectivas, dizem-nos para continuar, frente a frente com uma outra voz que é a das coisas e dos lugares quebrados, estranhos. Lembro-me de ti, corporizo-te num conselho que sai do coração, da sabedoria que ficou do teu percurso por mim dentro e já não é tão mau assim, será sempre possível, dizes-me ao ouvido para olhar duas vezes antes de partir, para reparar. Acolho o mundo ao sabor da tua voz, morna, segura.
A cada dia da minha vida sinto-me mais inspirado pela definição que as tuas mãos traziam a cada troço de um desafio. Ainda trazem, nesta promessa que se ergue das memórias primeiras para te reviver, para te abraçar. E hoje não sou mais o aprendiz no caminho de casa, sou o homem que tu ajudaste a ampliar a partir de um sorriso de criança, sou-te ainda mas de outra forma. Os que amamos estão-nos gravados, vivem dentro de nós alimentados pela respiração íntima das emoções para nos amparar, para nos falarem da única coisa que não morre: o amor que se conserva como a uma identidade. És sempre em mim e vives ainda aqui, hoje, como a prova irrefutável da imortalidade do essencial, como a certeza de que a morte é um lugar de esquecimento para o qual nunca te deixei cair - como a uma criança que as tuas mãos amparam, chego a ti de uma outra forma.
Avô, repara como o amor encontra sempre um caminho e nos entrega à nossa casa, minha e tua, sempre.

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