junho 11, 2010

A Sibila

"Pois o que é a aristocracia senão o degrau mais alto que uma sociedade deseja atingir, a supremacia de determinada classe sobre as outras, a imposição dos seus valores, sejam eles de força, de trabalho, de espírito, conforme a época que lhes é propícia? A família de Bernardo Sanches tinha adquirido um estado aristocrático, o que quer dizer que estacionara no cumprimento de determinada herança de hábitos, frases, opiniões que, uma vez desprendidas da personalidade que os fizera originais, restavam agora somente como snobismos e ocas imitações. Enfim, o talento da imitação - pensava Germana - chegava a ser tão característico como uma originalidade.
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Baixinho, Quina começou a rezar, como era costume estabelecido nas noites de apreensão e insónia, quando se temia um infortúnio, quando a alma, bruscamente inquieta, voltava a sua potência para a oração. Não era uma prece litúrgica. Era mais. Era um clamor doce, imperativo e quente, um alento de fé tão cheio de pura espiritualidade como só se encontra nesses clãs primitivos, para quem a solidão e a natureza são excelsas formas de pensamento e apelos de união com o mistério protector e terrível. "Levai para longe a fome, a peste, a guerra e os amigos que mentem. Fazei-nos humildes na riqueza, orgulhosos na desgraça, sábios em desejar, corajosos em receber a ofensa, valentes em cumprir a vida e a morte [...] Abençoai os nossos gostos, para que sejam nossos brinquedos e não cadeias. Abençoai as nossas dores, para que elas sejam experiência e não castigo."
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O contacto com os radicais problemas da vida moldara-a desde a infância, amadurecera-a depressa, tornando-a incapaz de folgar com aquelas cândidas raparigas a quem o conforto retardava, prolongando-lhes os tempos infantis.
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Os prazeres femininos, o amor e a passividade espiritual, as ninharias dum sentimento ou dum capricho que nascem dessa euforia tirânica que as mulheres gostam de exercer sobre aquele a quem sabem dominado pelos sentidos, isso foi-lhe negado. (...) Dedicou-se a evoluir, a subir, a desenvolver tentáculos de intrigas que favorecessem a sua decisão, que era enriquecer e, mais ainda, ser notável.
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Gosto das pessoas que são incapazes de deixar de ser o que são, ou das que são capazes de se afazer por completo seja ao que for. Há na nossa gente muita qualidade de homens e mulheres - ricos que nunca largaram os tamancos, ou os que encheram a casa de doutores, como meu irmão José, e ninguém sabe se ele nasceu numa cama de bancos, se na casa de Folgozinho, no meio daquela macacaria toda de retratos e jarras da China. Há os que foram pobres sempre, não serviram ninguém, ou os que foram criados de frade e caseiros esganados pelas rendas. Os que não gostavam de trabalhar, como teu pai, mas que, mesmo as mulheres, não ia senão buscar aquelas que não o podiam envergonhar. Mesmo o meu tio do Freixo, por alcunha «o lembã», mesmo esse; fazia rir pela mania que tinha de comer merendas em todas as casas e adular as parentas, a dizer «sempre gostei muito desta prima...» Mas nunca ninguém da nossa gente quis arremedar costumes que não eram seus, e, quando tomavam esses costumes, não era por imitação, mas porque, por direito, lhe competiam. Teu irmão fez um casamento que nos humilha. Ainda que a mulher tivesse tantos carros de pão como estrelas há no céu, era mais pobre do que nós. É o que penso."
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Era agora uma mulher tão consciente dos seus valores, que atingira este supremo estado de liberdade que é o de não desejar imitar ninguém, nem esperar de ninguém alguma coisa.
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Não sabia ambicionar; sabia impor-se numa exigência de triunfo imediato. Não tinha imaginação para arquitectar, esperar; apenas compreendia o momentâneo, e era isso que ela queria adquirir. Tudo o que não obedece a um plano, dura apenas o tempo da realização; e não tem glória, nem esse cunho das coisas humanas que trazem consigo um alento de superação e de eternidade."

junho 10, 2010

Fanny Owen

"Um homem mais conhecedor da alma das mulheres veria nesse tom uma profecia, que é a maneira de querer mal a alguém envolvendo o mundo inteiro.
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Assim estava encerrado o tempo da amizade de dois homens, ambos soberbos nas suas virtudes e falíveis nelas todas. Porque tudo o que o homem pode prever de si mesmo é errar e ser presa das suas ilusões.
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Porque sucedia tudo aquilo? Sem a amizade, o homem vive no deserto da ideia que faz de si próprio, elogiando às vezes o próprio coração mas sem lhe reconhecer a existência. Exagera-se a sensibilidade dele, mas não se compreendem os seus recursos.
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O país sofria as consequências da bancarrota, e a política influía nos mais pequenos cidadãos, porque todos se acotovelavam nas suas intrigas, já que não podiam criar distância entre eles e os seus governos. O acto de deliberar passava-se ali ao lado da função de produzir. Isto é mau para a fé dos homens; que se tornam optimistas à custa de se julgarem dispensados de odiar, de acusar e de substituir. É preciso espaço para valorizar o que se detesta e o que se ama. Sem o que tudo é alvoroço e promiscuidade.
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A gente simples ama o mistério; ele consola-a de tudo o que não atinge nem com a educação, nem com o risco.
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A fortuna que não é ganha com as mil peripécias do trabalho que encobrem a sordidez da ambição, parece conter um destino malicioso, que é o de aspirar a novas experiências que a consagrem como um direito.
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A honra, o que era? Um brio de obter um direito, e não trair nem a terra nem os homens, uma paixão fria de resistir ao que era vulgar.
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O jovem Owen era portanto um desses ingleses que se instalam numa consciência colonizadora e se animam de génio empreendedor para cultivarem o merecimento de uma pátria de que foram suprimidos.
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O que tarde se aprende não traz experiência, traz desilusão.
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És a única mulher de quem tenho sempre saudades. E saudade é amor. (...) Os românticos são uma memória descartada da consciência. (...) Era desses homens de boa fé, que nunca deixam que o seu casamento se torne insípido, porque sempre lhes resta o gosto da amizade depois de extinta a surpresa do amor.
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O luxo do amor é a tristeza. Mas começam sempre por lhe chamar esperança. (...) Pouco sabe da tristeza quem diz ao triste que se alegre. As dores profundas mais crescem com a consolação. E o alívio delas parece afronta. (...) A dor é fecunda em misérias e o mais das vezes elas transformam-se em verdades.
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Este excitante que o símbolo consolida na história das relações humanas foi o que deveras actuou no processo destas vidas. Todos os equívocos, contratos misteriosos, fantasias demolidoras, raivas egoístas que marcaram a passagem de Camilo e José Augusto um pelo outro significavam o combate aceso que o símbolo determina no homem. (...) Desde que o homem deixou de combater pela apropriação de bens imediatos, como a caça que outro tinha obtido, ou a mulher, quando esta rareava na própria tribo, passou a guerrear pelo símbolo desses mesmos objectos. O instinto básico de satisfazer necessidades foi substituído por um estímulo de razões mais abstractas. A violência é uma mitologia do excesso.
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As perturbações da consciência são imperceptíveis talvez devido à cultura e ao vocabulário que lhe permitem continuar a parecer um excêntrico quando é simplesmente um melancólico por constituição hereditária.
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Não viu senão evidências; o ser humano renuncia a elas quando aspira ao seu próprio impossível.
(...) A verdade vive isolada do registo em que pode ser contada ao mundo.
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Debaixo da luz mentirosa da Lua não vemos que o amor e o ódio mantêm entre eles um pacto amplo e constante. Respeitemos esse pacto e aqueles que o cumprem. (...) Os sentimentos que se tornam vingança são dignos só pelos sofrimentos que ocultam.
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Não resta dúvida de que ela [Fanny] era o pólo libidinal de toda a intriga, e daí resulta ser tão necessária a sua presença para a irmã que, ao mesmo tempo, a odiava. Sem Fanny, os seus amores com José Augusto não subsistiam; sem Fanny, aquilo que foi uma simples afeição de boémios, entre Camilo e José Augusto, não crescia em obsessão até desencadear acções exorbitantes, como a entrega das cartas comprometedoras. Mas qual o motivo da erotização de Fanny, do seu atomismo erótico descontrolado e portanto capaz de fazer explodir em cadeia toda uma líbido ao nível familiar e social? Em parte, era um dom, uma espécie de energia absoluta que a natureza lhe confiava."