junho 10, 2010

Fanny Owen

"Um homem mais conhecedor da alma das mulheres veria nesse tom uma profecia, que é a maneira de querer mal a alguém envolvendo o mundo inteiro.
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Assim estava encerrado o tempo da amizade de dois homens, ambos soberbos nas suas virtudes e falíveis nelas todas. Porque tudo o que o homem pode prever de si mesmo é errar e ser presa das suas ilusões.
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Porque sucedia tudo aquilo? Sem a amizade, o homem vive no deserto da ideia que faz de si próprio, elogiando às vezes o próprio coração mas sem lhe reconhecer a existência. Exagera-se a sensibilidade dele, mas não se compreendem os seus recursos.
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O país sofria as consequências da bancarrota, e a política influía nos mais pequenos cidadãos, porque todos se acotovelavam nas suas intrigas, já que não podiam criar distância entre eles e os seus governos. O acto de deliberar passava-se ali ao lado da função de produzir. Isto é mau para a fé dos homens; que se tornam optimistas à custa de se julgarem dispensados de odiar, de acusar e de substituir. É preciso espaço para valorizar o que se detesta e o que se ama. Sem o que tudo é alvoroço e promiscuidade.
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A gente simples ama o mistério; ele consola-a de tudo o que não atinge nem com a educação, nem com o risco.
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A fortuna que não é ganha com as mil peripécias do trabalho que encobrem a sordidez da ambição, parece conter um destino malicioso, que é o de aspirar a novas experiências que a consagrem como um direito.
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A honra, o que era? Um brio de obter um direito, e não trair nem a terra nem os homens, uma paixão fria de resistir ao que era vulgar.
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O jovem Owen era portanto um desses ingleses que se instalam numa consciência colonizadora e se animam de génio empreendedor para cultivarem o merecimento de uma pátria de que foram suprimidos.
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O que tarde se aprende não traz experiência, traz desilusão.
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És a única mulher de quem tenho sempre saudades. E saudade é amor. (...) Os românticos são uma memória descartada da consciência. (...) Era desses homens de boa fé, que nunca deixam que o seu casamento se torne insípido, porque sempre lhes resta o gosto da amizade depois de extinta a surpresa do amor.
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O luxo do amor é a tristeza. Mas começam sempre por lhe chamar esperança. (...) Pouco sabe da tristeza quem diz ao triste que se alegre. As dores profundas mais crescem com a consolação. E o alívio delas parece afronta. (...) A dor é fecunda em misérias e o mais das vezes elas transformam-se em verdades.
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Este excitante que o símbolo consolida na história das relações humanas foi o que deveras actuou no processo destas vidas. Todos os equívocos, contratos misteriosos, fantasias demolidoras, raivas egoístas que marcaram a passagem de Camilo e José Augusto um pelo outro significavam o combate aceso que o símbolo determina no homem. (...) Desde que o homem deixou de combater pela apropriação de bens imediatos, como a caça que outro tinha obtido, ou a mulher, quando esta rareava na própria tribo, passou a guerrear pelo símbolo desses mesmos objectos. O instinto básico de satisfazer necessidades foi substituído por um estímulo de razões mais abstractas. A violência é uma mitologia do excesso.
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As perturbações da consciência são imperceptíveis talvez devido à cultura e ao vocabulário que lhe permitem continuar a parecer um excêntrico quando é simplesmente um melancólico por constituição hereditária.
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Não viu senão evidências; o ser humano renuncia a elas quando aspira ao seu próprio impossível.
(...) A verdade vive isolada do registo em que pode ser contada ao mundo.
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Debaixo da luz mentirosa da Lua não vemos que o amor e o ódio mantêm entre eles um pacto amplo e constante. Respeitemos esse pacto e aqueles que o cumprem. (...) Os sentimentos que se tornam vingança são dignos só pelos sofrimentos que ocultam.
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Não resta dúvida de que ela [Fanny] era o pólo libidinal de toda a intriga, e daí resulta ser tão necessária a sua presença para a irmã que, ao mesmo tempo, a odiava. Sem Fanny, os seus amores com José Augusto não subsistiam; sem Fanny, aquilo que foi uma simples afeição de boémios, entre Camilo e José Augusto, não crescia em obsessão até desencadear acções exorbitantes, como a entrega das cartas comprometedoras. Mas qual o motivo da erotização de Fanny, do seu atomismo erótico descontrolado e portanto capaz de fazer explodir em cadeia toda uma líbido ao nível familiar e social? Em parte, era um dom, uma espécie de energia absoluta que a natureza lhe confiava."

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