julho 21, 2010

Quina, a Sibila

"Como a dor física, todas as outras ela esquecia depressa e, mesmo ao vivê-las, fazia-o já com antecipado desprendimento. Contudo, o seu coração era generoso e grande; só que, talhado para a vida, toda a violência dela, todas as suas ciladas ao que é indefeso e fraco, esse coração possuía um revestimento de pessimismo que o fazia quase invulnerável.
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O sofrimento está sempre aliado a uma emoção violenta - uma surpresa, o destruir dum hábito que nos prometia estabilidade. De resto, a morte de um velho não inspira dor a outro velho - inspira pânico.
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E um dos aspectos mais característicos de Quina era desprezar por princípio todas as mulheres. Não que pessoalmente as odiasse, mas, na generalidade, atribuia-lhes uma categoria deprimente, e, como elemento social, não as considerava. A verdade era que, toda a vida, ela lutara por superar a sua própria condição, e, conseguindo-o, chegando a ser apontada como cabeça de família, conhecida na feira e no tribunal, procurada por negociantes, consultada por velhos lavradores que a tratavam com a mesma seca objectividade usada entre eles, mantinha em relação às outras mulheres uma atitude não desprovida de originalidade. Amadas, servindo os seus senhores, cheias dum mimo doméstico e inconsequente, tornadas abjectas à custa de lhes ser negada a responsabilidade, usando o amor com instinto de ganância, parasitas do homem e não companheiras, Quina sentia por elas um desdém um tanto despeitado e mesmo tímido, pois havia nessa condição de escravas regaladas alguma coisa que a fazia sentir-se frustrada como mulher.
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Enfim, Germa e Quina compreendiam-se bem demais, cada uma delas via na outra a sua própria personalidade, como num espelho que não tem os jogos de luz da benevolência para lhe adoçar os ângulos e esbater as deformidades. Cada uma via na outra os próprios defeitos e virtudes e, uns porque não gostavam de os contemplar em outrem a nu, outras porque antes quisessem tê-las como originais, isso fazia com que mutuamente se detestassem, pois nós sempre tomamos como vexame a cópia do nosso eu.
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Nunca se pode tratar mal os filhos dos nossos amigos, porque isso é como esbofetear os mortos. As coisas feias são tão próprias do mundo como as bonitas. Tu és muito nova, e, no colégio, não fazem outra coisa que tapar-te os olhos - o que é um engano, menina. Conhecer o mal é já uma defesa. Onde não há inocência, pode haver pecado; mas onde não há sabedoria, há sempre desgraça.
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Mudar de hábitos e de lugar, que é senão uma fútil maneira de encarar a morte?
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Quina revelou-se-lhe, afinal, possuidora de todo o puro enigma do ser humano, vórtice de paixões onde subsiste, oculta, nem sempre declarada, às vezes triunfante, uma aspiração de superação, alento sobre-humano que redime e transfigura. Dedicou-lhe homenagem e, se não a amou, nela aprendeu toda a história do homem, e, recordando-a, deu-lhe a eternidade do seu coração.
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Ela denunciava agora um completo desdém pelas relações, os atavios, todo o dispêndio de forças, a contrariedade de gostos que durante tantos anos, imolara à sociedade. Atingia a filosofia de mulher que se aposenta, deixara de lutar pela entente cordiale entre ela e o mundo, e, vendo a vida esgotar-se-lhe, exigia-a apenas para uso próprio, não desperdiçava um minuto com maneiras melífluas ou cativantes sorrisos, porque já não esperava o juro desses gastos.
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Tinha cinquenta e oito anos, mantinha-se com uma esbelteza de rapariga, se bem que um tanto corcovada e de cabeleira totalmente branca. Estava ela no apogeu das suas faculdades de administradora, de discernimento e de vivacidade. Sabia fruir o prazer da lisonja, sem lhe ceder os seus interesses; sabia ser cauta, sem deixar de ser audaciosa. Sabia ser generosa sem prejuízo seu e sem estabelecer entre ela e o desafortunado ou o vencido essa espécie de ralações odiosas, comuns no mundo dos que mutuamente se espoliam e degradam. Estava perfeita no seu cargo de sibila, pois conhecia a alma humana de dentro para fora, o que é talvez prever sempre nela o imprevisível, sem porém, chegar a compreendê-la. Era uma fortaleza de prudência cuja torre de menagem era sempre a vaidade. (...) Ela era incapaz de qualquer forma de desinteresse. Quando amava, era porque o troco de reconhecimento a compensaria em larga escala. Quando recebia um desagradecimento ou uma injúria como paga, sofria, não como quem é ultrajado, mas como quem foi espoliado do seu capital; e não hesitava em arriscar novas paradas sempre mais generosas e temerárias, para o recuperar. A sua caridade não tinha, portanto, esse cunho de vileza que caracteriza as mais pias acções movidas pela piedade ao ser inútil e indefeso. Era sempre um negócio, sempre um contrato em que a moeda era a reciprocidade de sentimentos. Não havia esmola e pedinte, protector e socorrido. Havia só duas criaturas que se defrontam sobre a face da terra, e lealmente fazem a permuta dos seus bens - pão por alegria, um sorriso por um conforto, admiração por um valor. Nada pertence ao homem do que lhe é dado aceitar, nem o seu destino, nem a sua aptidão, nem a sua fé, nem a sua alma. Tudo ao homem entrega, e dele recebe a sua própria consciência. Somente, Quina, com o seu instinto de lucro que lhe era peculiar, esperava sempre dos outros um pouco mais. E até ao fim da vida arriscaria sempre um pouco mais para o receber."

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