"Amanhecera algumas vezes no silêncio de uma casa imóvel, pousada como uma borboleta morta entre as sombras sem corpo da noite, e olhava, sentado na cama, os contornos difusos dos armários, a roupa ao acaso nas cadeiras como teias de aranha cansadas, o rectângulo do espelho que bebia as flores como as margens do Inferno o perfil aflito dos defuntos. Vinha cá fora observar os insectos em torno das lâmpadas no silêncio do ventre secreto do Verão, de ventre morno e secreto de mulher no Verão, sentia o doce cheiro putrefacto do levante na pele, escutava o rumor desordenado das acácias e pensava (...) Estou na quinta do avô perto dos bancos de azulejo e dos galinheiros em repouso, se eu fechar os olhos penas brancas, soltas, descer-me-ão no interior do crânio numa leveza de neve, e acocorava-se no alpendre, incrédulo, sob as estrelas de vidro do Algarve, coladas ao cenário do tecto de acordo com uma geometria misteriosa. E, como sempre acontecia no decurso das insónias, os malucos da infância, os ternos, humildes, indignados, esbracejantes malucos da infância principiavam a desfilar um a um pelas trevas numa procissão ao mesmo tempo miserável e sumptuosa de palhaços pobres iluminados de viés pelo foco obliquo da memória, ao som da música antiga do gramofone do sótão. (...)"
António Lobo Antunes
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