Há 10 meses
setembro 28, 2011
setembro 18, 2011
setembro 11, 2011
Pensemos, pois.
159. Hoje fui ver o mar. Na realidade não ia vê-lo mas aproveitei. E à primeira impressão eu via-o mas não o via, porque via dele apenas a realidade imediata em ondas e espuma. Foi preciso que depois deixasse vir ao de cima o que oculto se me queria revelar. Abandonei-me a ele e deixei. Mas o que então se me revelou foi uma nebulosa confusa de emoções, memórias, associações indistintas, qualquer coisa que se anuncia como numa casa desabitada. O indizível. O flagrantemente presente e que se não acaba de esclarecer. O estranho que nos perturba e não sabemos de onde vem. A praia estava deserta e o mar convulsionava-se num mundo ainda por nascer. Mas havia sol e a alegria dele era gratuita, sem finalidade nenhuma, e isso agravava-lhe o absurdo de ser. As águas brilhavam até ao indeciso do seu limite. Um homem ocasional, eu, olhava o seu mistério inquietante, tentava entender a estranheza de tudo isso. Sentia a presença de uma realidade inexistente, porque ela não existia senão no que estava vendo e, no entanto, eu sabia, na minha inquietação, que estava lá. Eu podia enumerar todos os elementos do que presenciava, mas havia outra realidade que ficava intacta à minha enumeração. Essa, essa - dizê-la. Não é aí precisamente que começa o «escrever bem»? Por isso a escrita não tem que ver com o real mas com o outro real dele. Assim ela constrói outro mundo que aponta apenas para o primeiro mas se não parece nada com ele, mesmo quando se parece e todos os elementos se lhe ajustam. Porque aquilo com que se parece é o invisível dele, a outra coisa das coisas, o mistério que lá mora e se reconhece, depois, que lá mora e o reconstrói na sua invisibilidade para ser enfim o real como tal reconhecido. Há no homem o insondável da sua interrogação. Mas só o artista a conhece e a pode revelar aos outros para ela ser desses outros e a verdade do ser se lhes iluminar. Escrever bem. Ser sensível ao que se quer revelar e ser só a sua revelação. E o mundo existir, porque ele o revelou. E é tudo.
179. Ir ver o mar. Vê-lo de vez em quando e sempre com a mesma fascinação. Que é que vem dele para assim nos fascinar? A sua força imensa diante da nossa pequenez. O seu mistério visível e inquietante porque é o invisível da sua visibilidade. O irrisório da sua absurda convulsão e o aceno indistinto que vem de trás do horizonte e não sabemos o que é. O aroma a espaço, uma memória confusa de aventura, o sinal presente da sua infinitude ausente, a dilatação de nós a um poder imenso, um certo conluio com Deus.
Vergílio Ferreira,
In Pensar.
In Pensar.
setembro 01, 2011
Avô-de-toda-uma-Vida.
Há uma janela em minha casa de onde vejo o mundo todo, ele coube-me inteiro no espaço tenro da infância, lugar sem pressas, abrigo sem paredes de angústia, alvorada com sabor a promessa. E esse retrato principal passou, as horas sucederam-se, os sons da vida distraíram o coração calejado dos homens. Volto a olhar, para ver, deste mesmo sítio onde aprendi a linguagem dos afectos para nomear o que me aquecia a pele por dentro, para reclamar um território de olhos fechados. Não sabia nada, não mudei muito, desde então. Movo-me de olhos cerrados ao sabor desse vento que a alma me devolve, às vezes, quando o dia se despe tornando-se memória íntima numa pele arrepiada de noite. É o teu rosto que trespassa o músculo tenso da rotina, é ele que me chama o que nunca fui suficientemente, o teu neto, que a morte arrastou contigo para esse campo de pedras estendido sobre o mistério da terra. Há um vento acidentado de Fevereiro que me ensinou a chorar por alguém e já não por coisas, que me engoliu todo para dentro de um pequeno espaço onde o teu corpo se despediu de mim. Já lá vão onze anos, Avô, e tanto o mundo mudou sem que eu o acompanhasse realmente. Um homem doente é um exilado, digo-te eu, e o amor pode bem ser a doença que me mantém vivo, sofrendo, mas agarrado a esse espinho de luz que quero honrar, que quero manter aceso. Os teus olhos, as tuas pequenas mãos pousadas sobre a carne que nos une, que nos ata um ao outro, duas peças de um mesmo organismo, duas vozes que se escusam mutuamente num silêncio que contempla a nudez de tudo, a verdade sempre por detrás da pressa. Olho e reparo, a noite vence o pudor e condescende: a casa ergue-se como um agasalho contra o medo, as janelas são o futuro que tu tantas vezes puxaste com o suor do teu trabalho, com a perseverança que a madrugada chamou de teimosia, enquanto os teus filhos dormiam à espera do que tu não tiveste. Há uma dimensão física do amor que nos torna imortais, hirtos contra a finitude antecipada, e as rugas do teu rosto sempre sorriram ao que chamam envelhecer. Nunca se é velho quando se é contemporâneo da esperança, artesão de uma vida melhor, confidente de coisas que a linguagem não ousa prender. Avô, lembro-me de ti, da nossa despedida, de me dizeres que era um tempo que se estava a fechar, os dois, nesse lugar mágico que eu avisto da minha janela e sei que nessa hora me senti exíguo, emudecido na adivinhação de uma mão invísível que desenhou o espaço em branco da morte. Dou-te a mão, daqui, deste sítio onde a cada dia semeio um pedaço de sonho, um excerto da tua alma, ampla como o verde forte da tua terra, e ganho raízes, sou outra vez um miúdo a bater à porta, esperando o teu passo sereno ao cimo das escadas, a felicidade são vinte e tal degraus e um coração sôfrego. Espero há onze anos que essa porta se abra pela tua companhia, pelo cheiro a sangue quente, rosas e camélias, os objectos reflectem o nosso passado juntos num jardim de carinho. É uma porta escura, esta, que te separa de mim, nas visitas que te faço, fugidias, tenho medo do que a água dos meus olhos me quer contar, prefiro prometer voltar, sempre em frente, desde a porta maior desse lugar onde descansa a minha origem, a tua origem, a nossa. Espreito, pelo vidro da morte, quando estou sozinho, e falo contigo, digo-te tudo aquilo que o amor sempre renova, inspira e desenvolve. Vivemos os dois, deitados lado a lado, entre paredes de pedra onde o teu olhar sibilino aguarda os teus, sem pressa, abdicar é próprio dos grandes, sempre soubeste entregar o melhor de ti aos outros e sentir nessa dádiva um acerto com os ponteiros do mundo, a tua hora é a minha vida, meu querido Avô. Enquanto eu viver e o arrepio da dúvida nocturna me acompanhar as insónias do coração, a tua carne será um abraço maior do que as distâncias, os teus olhos verão mais longe, deixem as minhas pernas que o teu Norte se manifeste. Sou um cabotino, um ignorante, sei-o, serei sempre, mas aprendi o que não tem preço, título ou grau e que é o que me torna mortal e não morto, já: senti nas entranhas a declaração desse espaço em branco maior do que a morte, dessa casa onde cabemos ilesos, todos, tantos, e que se chama amor. É uma janela aberta, Avô, de onde o teu sorriso prospera em direcção aos campos, à misteriosa luz do raiar do dia, e a uma criança curiosa que te perguntou, com as mãos, o que era aquele calor que vinha do teu peito e que lhe fazia bem, só isso, e que era afinal tudo. Será sempre, prometo.
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