Há uma janela em minha casa de onde vejo o mundo todo, ele coube-me inteiro no espaço tenro da infância, lugar sem pressas, abrigo sem paredes de angústia, alvorada com sabor a promessa. E esse retrato principal passou, as horas sucederam-se, os sons da vida distraíram o coração calejado dos homens. Volto a olhar, para ver, deste mesmo sítio onde aprendi a linguagem dos afectos para nomear o que me aquecia a pele por dentro, para reclamar um território de olhos fechados. Não sabia nada, não mudei muito, desde então. Movo-me de olhos cerrados ao sabor desse vento que a alma me devolve, às vezes, quando o dia se despe tornando-se memória íntima numa pele arrepiada de noite. É o teu rosto que trespassa o músculo tenso da rotina, é ele que me chama o que nunca fui suficientemente, o teu neto, que a morte arrastou contigo para esse campo de pedras estendido sobre o mistério da terra. Há um vento acidentado de Fevereiro que me ensinou a chorar por alguém e já não por coisas, que me engoliu todo para dentro de um pequeno espaço onde o teu corpo se despediu de mim. Já lá vão onze anos, Avô, e tanto o mundo mudou sem que eu o acompanhasse realmente. Um homem doente é um exilado, digo-te eu, e o amor pode bem ser a doença que me mantém vivo, sofrendo, mas agarrado a esse espinho de luz que quero honrar, que quero manter aceso. Os teus olhos, as tuas pequenas mãos pousadas sobre a carne que nos une, que nos ata um ao outro, duas peças de um mesmo organismo, duas vozes que se escusam mutuamente num silêncio que contempla a nudez de tudo, a verdade sempre por detrás da pressa. Olho e reparo, a noite vence o pudor e condescende: a casa ergue-se como um agasalho contra o medo, as janelas são o futuro que tu tantas vezes puxaste com o suor do teu trabalho, com a perseverança que a madrugada chamou de teimosia, enquanto os teus filhos dormiam à espera do que tu não tiveste. Há uma dimensão física do amor que nos torna imortais, hirtos contra a finitude antecipada, e as rugas do teu rosto sempre sorriram ao que chamam envelhecer. Nunca se é velho quando se é contemporâneo da esperança, artesão de uma vida melhor, confidente de coisas que a linguagem não ousa prender. Avô, lembro-me de ti, da nossa despedida, de me dizeres que era um tempo que se estava a fechar, os dois, nesse lugar mágico que eu avisto da minha janela e sei que nessa hora me senti exíguo, emudecido na adivinhação de uma mão invísível que desenhou o espaço em branco da morte. Dou-te a mão, daqui, deste sítio onde a cada dia semeio um pedaço de sonho, um excerto da tua alma, ampla como o verde forte da tua terra, e ganho raízes, sou outra vez um miúdo a bater à porta, esperando o teu passo sereno ao cimo das escadas, a felicidade são vinte e tal degraus e um coração sôfrego. Espero há onze anos que essa porta se abra pela tua companhia, pelo cheiro a sangue quente, rosas e camélias, os objectos reflectem o nosso passado juntos num jardim de carinho. É uma porta escura, esta, que te separa de mim, nas visitas que te faço, fugidias, tenho medo do que a água dos meus olhos me quer contar, prefiro prometer voltar, sempre em frente, desde a porta maior desse lugar onde descansa a minha origem, a tua origem, a nossa. Espreito, pelo vidro da morte, quando estou sozinho, e falo contigo, digo-te tudo aquilo que o amor sempre renova, inspira e desenvolve. Vivemos os dois, deitados lado a lado, entre paredes de pedra onde o teu olhar sibilino aguarda os teus, sem pressa, abdicar é próprio dos grandes, sempre soubeste entregar o melhor de ti aos outros e sentir nessa dádiva um acerto com os ponteiros do mundo, a tua hora é a minha vida, meu querido Avô. Enquanto eu viver e o arrepio da dúvida nocturna me acompanhar as insónias do coração, a tua carne será um abraço maior do que as distâncias, os teus olhos verão mais longe, deixem as minhas pernas que o teu Norte se manifeste. Sou um cabotino, um ignorante, sei-o, serei sempre, mas aprendi o que não tem preço, título ou grau e que é o que me torna mortal e não morto, já: senti nas entranhas a declaração desse espaço em branco maior do que a morte, dessa casa onde cabemos ilesos, todos, tantos, e que se chama amor. É uma janela aberta, Avô, de onde o teu sorriso prospera em direcção aos campos, à misteriosa luz do raiar do dia, e a uma criança curiosa que te perguntou, com as mãos, o que era aquele calor que vinha do teu peito e que lhe fazia bem, só isso, e que era afinal tudo. Será sempre, prometo.
Há 10 meses
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