"Todos somos chamados, pelo menos uma vez, a desempenhar um papel que nos supera. É nesse momento que justificamos o resto da vida, perdida no desempenho de pequenos papéis indignos do que somos."
Sousa Falcão,
In: Felizmente há Luar!,
Luís de Sttau Monteiro
O corpo confunde-se com o verde silêncio do espaço, a neblina matinal é sorvida pelo sol numa dança que adoça os cantos aos muros que se lançam aos passos, envolvendo as janelas das casas como uma fina renda branca. Surjo sem destino, estrada fora, o ardor dos olhos dessa hora puxa pelo coração que revela as inscrições mais cavadas na minha geometria.
O meu irmão acode por entre a paisagem do parque das recordações e a minha carne arrepia-se como se ela própria se tocasse num carinho infinito e descobrisse o peso da comoção de um fado que aconteceu. Desde sempre gostei da luz muda do começo do dia e de abrir os olhos, agarrar-me à vida, um céu e nada mais. Enquanto caminho, apanho-te na ponta dos dedos, surpreendo-te com a caneta sobre uma folha em branco e com um sorriso aberto para o ideal que não sabes se virá, mas ainda assim formulas, numa perpétua tentativa, um mundo volumoso que devolves aos outros como um presente, como sugestão que traz a coincidência entre presente e futuro, as tuas mãos pintam de esperança o espaço que constróis com o outro, pelo outro.
Vou fazer vinte e cinco anos e gosto de os celebrar contigo,R., os momentos sucedem-se e sorrio, sozinho, embalado pela relativa serenidade que conquistei, neste tempo. Desde sempre te disse para não sofreres tanto com os desaires do mundo, para não agarrares o sofrimento pelas costas que é quando ele retribui o gesto e passa a morar dentro de ti. O mistério da vida começou de mãos dadas, eu e tu, impressos num corpo quase idêntico, num diálogo que escapa pelos fios da persiana, semi-acordada na madrugada e ao próprio entendimento dos outros, intrigados transeuntes num cenário de papel. Sempre te inquietaram as paredes que impediam o espaço da alma de ser maior, mais expressivo, e a opacidade da injustiça levou-te cedíssimo para as palavras, arma de reinvenção, de desafio, de chegada até ao outro eu que mora no corpo dos que por nós passam. Sempre te admirei, espreitando, às escondidas, esse milagre da carne grávida de sonhos, de ânimo, de febre.
Procuro o jardim, afogo-me no perfume das flores, a beleza abre-se como um livro, como um terreno onde as explicações deslizam como pétalas soltas sobre o leito da última noite, a terra húmida não mente nunca. Não estás comigo e és tu quem mais me lembra que estou vivo, que me puxas com o teu desajeitado braço de criança para a frente, sempre foste o meu disfarce favorito, preso eu a um sarcasmo de quem já nasce velho e se vinga, impaciente, de um mundo que não mudou como esperado. Sorrio ao lembrar os meus quinze anos, montado nuns Oxford castanhos, que percorreram o mundo a preto e branco em aforismos, preconceitos, raivas, quando o que eu só queria era romper a noite mais depressa, limpar com as mãos a poeira que me apertava o coração. Queria arrumar a casa, sem partir nada, depressa, se faz favor, e viver sem imbróglios que amarrotassem o sentido. Era medo e a sua negação, ritualística, por amor de um lugar seguro, lá, ali, já à frente.
Neste, às vezes, convulso itinerário de corredores e saídas de emergência partilhei tudo contigo: as minhas mortes íntimas, o meu exótico desdém que desbotou quando a chuva da maturidade se abateu sobre a vida, o desespero corajoso, as dores agudas que aprendi a guardar no corpo, algures entre os olhos e a boca, as alegrias e uma gargalhada que tantas vezes fez o vento cair das árvores, com estrondo. Gosto do desalinho divertido que, de manhã, ao espelho, ensaias para suspender a maldade do dia com esse feixe de Estio que consiste em provocar os outros, obrigando-os a tornarem-se convictos sobreviventes de guerra. Tens o dom da sedução, as mesmas mãos que sempre me ajudaram com uma sisuda cautela, ajudaram muitos que se enrolaram no teu verbo para conhecerem uma inteligência luminosa, quente, carismática.
Rimos muito um do outro e nunca esqueço a tua pancada, debaixo da mesa, quando o meu silêncio, uma espécie de preguiça do outro, um castigo que tem que ver com as pequenas coisas da maldade que já nasceram comigo, começa a alastrar no recinto onde nos encontramos com o espectáculo da vida. "Onde não há ruindade, não há bondade, meu caro", disparo eu. Partilhamos essa devoção pelos antepassados, pelo cheiro a tempo nas divisões de uma casa, da qual nunca se muda, e que nos desobriga de viver a irritante felicidade sincrónica dos que não são de ninguém. Dou contigo, muitas vezes, a ouvir-me falar, com uma cólera que levanta o chão e me complica a vida, e fico mais triste quando me lembro que o mundo não coincide com o tamanho do teu sorriso e da tua bondade e que há quem já não volte, em carne, uma carne que eu amo tanto, aos lugares que preservamos sob um motor que nasceu connosco: o património, essa fileira de escadas onde nos reunimos todos, saudosos, cobertos da melancolia que escorre dos olhos, mergulhados nas fotos que nos ensinam o sofrimento como a disciplina dos que vivem, sendo alguma coisa. É uma guerra aberta, feroz contra a morte que nos leva a cuidar das frágeis linhas azuis onde adormece quem foi talhado de sempre.
És meu irmão e és aquele que mais sabe de mim, nunca sou tão feliz como quando as coisas simples do quotidiano nos chegam aos dois, lado a lado, sem sono, apegados a crenças, a valores, a medos, como duas crianças teimosas que desafiam o exílio podre dos citadinos. Nesta matéria, coitado, ouves-me sempre a desfiar a mesma cantiga sobre como os grandes homens vieram de lugares mais pequenos do que eles, é preciso ser-se o elástico moral, a primeira palavra dos tempos que se vivem, no lugar onde se vê coisas que não estão lá. As cidades são quase-só monstros de solidão e distância definitiva, de discreta mediocridade onde a anestesia se encontra numa renovada promiscuidade com o novo, o fácil, todos os dias. Nasci duro de esquinas, digo o que penso e faço o que digo, numa brusca tentativa de que os que amo não se percam, flutuando do alto da sua juventude, de costas viradas para a vida, que não é boa a maioria dos dias.
Sempre tu, a abraçares-me perto do limite sem medo que a rebentação nos consuma de mais, completamente. É a definição do amor na sua constante expansão, sei bem que me amas por aquilo que ainda não consegui ser e mais ainda por aquilo que me está interdito perceber. Dizes que vou morrer mais velho do que todos na nossa família, eu rio-me alto, sei bem que não vai ser assim. Só sei que quero voltar a casa, um dia e antes de ti, pela lição de amor mais extraordinária que recebi de quem me faz falta, a cada minuto. Somos criaturas de fidelidade, eu e tu, em que o princípio de participação se consuma num leque privado de seres, em circunstâncias em que importa recuperar a pátria que nos faz levantar e caminhar, estrada fora, logo pela manhã. "Em casa somos pessoas, lá fora somos ideais", dir-te-ia eu, com medo que te desiludas com o carácter tão primário da vida, num passeio pelas ruas que nos viram crescer até à porta onde se inscreve o número catorze. O sangue renasce do sangue.
Já são vinte e cinco, rapaz. Seremos sempre uma e a mesma coisa: um auto-retrato, um jogo de espelhos onde ninguém é de ninguém por obrigação, ou talvez também por isso, no que os imperativos de coração e de misericórdia nos obrigam a fazer para merecermos o dom da vida e encontrarmos o terreno subterrâneo que nos junta uns aos outros. "Coragem, Saúde e Fé", sempre ouvimos aqui em casa, e esta noite, porque não estás aqui, no quarto, vou pedi-lo com mais força, com o espírito cheio, impaciente. À espera que voltes. Sempre. Para que eu possa viver.
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