"Gostava de Londres, gostava da neblina. Fora duma e doutra, ter-se-ia sentido abandonado e nu como um primitivo, grotesco e risível. A neblina (assim, andando, reflectia o professor) esbate e amacia os contornos das coisas e dos seres, lubrifica os convívios, torna mais íntima e segura a personalidade, estabelece entre os homens uma translúcida barreira, uma distância, um véu, que os faz mais livres, mais senhores de si. É a condição indispensável da privacy. (...)
O homem londrino (meditava sempre o erudito, num crescendo de pensamento criador) vive numa atmosfera quase imaterial, propício ao culto fecundo do Eu, à meditação, à intimidade subjectiva. É-nos preciso ir ao clube, ao teatro, ao pub, ao restaurante, para reatar os laços do convívio material, para refazer todos os dias a noção vertiginosa da existência dos outros... Sim, precisamos do whist, do meeting, da igreja, do conforto, do golf, e até mesmo do whiskey, para sabermos que existimos socialmente, que fazemos parte dum mundo de indivíduos, de homens loiros, fleumáticos, precisos! Disso e do Times. Ah, o Times! (...)
«A civilização - costumava ele dizer aos seus alunos impassíveis - é a filha dilecta dos climas frios, e da Inglaterra em particular. As altas temperaturas e o ar seco enervam, ou excitam demasiado, fazem murchar as flores da criação e da cultura...»
Preparava havia bons vinte anos um minucioso ensaio sobre «As relações da temperatura e do grau higrométrico do ar com a marcha da Civilização» (ou coisa assim), mas faltavam-lhe, como é de ver, certos dados essenciais sobre as condições atmosféricas do Egipto sob a vigésima segunda dinastia, e outros momentos de importância histórica igualmente relativa, se os compararmos ao esplendor da era vitoriana."
In: Onde a Noite se Acaba, José Rodrigues Miguéis
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