dezembro 27, 2008

Maria

Maria está sentada no café numa mesa pequena encostada à parede do fundo. Maria está ausente e a sua alma paira sobre desígnios que lhe são íntimos.
Maria está a pensar sobre a sua crença em si mesma, na sua inexistência.
Maria cogita sobre se de facto vive ou sobrevive. Maria sente-se um nada sem fim. Nunca tinha começado. Lá fora chove e o vento uiva ferozmente. Faz frio lá fora.
Maria reflecte inconclusivamente. Maria julga-se só e tem medo da solidão. O maior medo de Maria encontra-se com ela diariamente, múltiplas vezes por dia.
Será para sempre? Maria nunca obtém respostas. Não as procura, tenta somente encontrá-las. Maria está aqui no café há duas horas sem dar por isso. Na mesa do fundo. Espera que a ouçam. Espera que lhe respondam. Espera que a compreendam. Sobretudo que a ouçam.
Maria olha a Vida com uma bonomia irónica. Permanece inerme e submissa. Sente-se desacreditada. Tem medo que os outros todos não lhe reconheçam a verdade. Ninguém olha para Maria, no café. Maria tilinta os dedos suavemente no tampo da mesa. Não sabe que dia é hoje, não sabe dimensionar a sua Vida. Pede um café, sente a boca seca e a voz presa. É da idade. A sua vida é um constante e contínuo monólogo. Maria tem uma casa.
Maria acordou e já não estava mais no café. Está deitada no sofá. A cabeça lateja. Maldita enxaqueca disse Maria. É esta a inexistência, a nulidade maldosa de Maria. Ela nem sabe porque se chama Maria. Que pretensão. Que extravagância onomástica. Que desproporção. Maria não se lembra da última vez que foi à Igreja. Nem se lembra frequentemente de Deus. Talvez Deus me tenha esquecido. Talvez Deus não me valha porque não pequei. Talvez Deus não precise de mim. Está cheio de trabalho. Maria ri-se sozinha. O purgatório. O meu nome. Chamam-me.
Maria raramente se ri. Está a ficar presa à mudez. Os movimentos escasseiam e Maria mergulha num leito de estátua. Olha para o tecto branco. No canto da sala a humidade escorre ao longo da parede. Pequenas partículas verdes salpicam o tecto. Maria sente um vómito sustido na boca da garganta. Desvia o olhar. Adormece.
O café. A mesa. Maria. Tudo são objectos envelhecidos. Tudo são pequenas partículas que salpicam o Mundo. Talvez o defeito seja de Maria. Todos temos o mesmo caminho; andamos de formas diferentes. A Vida de Maria parecia cravada a tudo o que é dissemelhante mas rotineiro. Maria sentia-se absorta do Mundo. Há lugares onde talvez nunca chegaremos.
Maria acorda atordoada. Levanta-se. Cai. Maria esquece-se de comer. Maria acende um cigarro. Maria aspira a nicotina que se espalha pelas entranhas e sente o prazer renegado. O seu âmago é demasiado sombrio, demasiado negro. A negridão assusta convincentemente Maria. Malditos cigarros disse Maria. É preciso força para oscultar a nossa alma. É preciso um juízo fortuito para a entender num momento apoteótico de sorte. Na vida de Maria havia hiatos e erros que eram tão imensos que a ultrapassavam.
Maria sonha e acorda sem se lembrar do sonho. A Vida esquecera-se de Maria. Maria sonhara muitas vezes com ela no entanto acorda sem se lembrar dela. Maria ri-se sozinha. O purgatório. O seu nome. Chamaram-na. Maria encontra-se com eles: ela e Ele e ri-se novamente.

Maria não duvida de que vive uma Vida sua. Maria tem noção de que vem um novo começo longe do seu maior medo: a solidão. No seu lugar.

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