dezembro 27, 2008

Na esquina de uma dia luminoso

‘As Coisas sem Tempo’

Ladainha dos póstumos

Natais Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito


David Mourão-Ferreira, in "Cancioneiro de Natal"

Querida T.,

Também é importante desconstruirmos uma realidade que nos é dada. Será altura de, no silêncio da nossa solidão, fazermos uma homenagem a quem já não é, para este tempo. É altura, sempre, de provarmos que há pessoas que não têm tempo, que a imortalidade é feita da memória. E que da memória podemos fazer o nosso cavalo de batalha contra a solidão. Ao ler este poema, lembrei-me da nossa conversa no outro dia. Lembrei-me de dias e de momentos que trago em mim, acesos como uma vela, no escuro de um lugar de fé. O Natal dos ausentes, a galeria das perdas. Os abraços ao nada, a qualquer coisa que não tem fim, imaterial. É assim a luz do Amor, projecta-se para lá da morte, destrói o tempo. Em vez da visão "solar" de um Natal demasiado "físico", que haja uma voz presa pelo desejo de evocar, de reanimar as lembranças, uma alma que não tenha medo de chorar em dias de festa nem em teimar que o passado é uma invenção da cabeça e não do coração. Sinto saudades de ser criança, sinto medo que venha um tempo em que não me reconheça, em que não me lembre de quem foi história e estória comigo. Como será o Natal "em que não viva já ninguém meu conhecido?", como se aprende a lidar com os buracos que a morte e a separação criam? Assusta-me a passagem do tempo, irrita-me que as pessoas tenham "um tempo", não é justo.
Caminhar também significa que nos roubem pedaços de nós, que tenhamos de ver o nosso reflexo afastar-se, diluir-se num vazio imenso. Percebo tudo o que me dizes, é duro sentires alguém a escorrer-te por entre os dedos, é triste viver com "lugares vazios" no coração. É como se tu soubesses que, longe das tuas coisas, das tuas pessoas, do teu caminho, a vida nunca será maior e tenha de crescer para baixo, tenha de significar menos. É, viver com a verdade, trazer dentro de nós a armadilha do pensamento, é penoso, há dias em que existir devia ser, porque sim, só. Não gosto de viajar sozinho, preciso de uma mão no silêncio de um dia mau. Sem explicações. Dar, sem perguntas, sentires uma parte tua atravessar alguém que está perante ti em busca de um pedaço de si, perdido nas pedras do caminho. Talvez hoje, nos dias que vivemos na primeira pessoa, procuremos o que nos foi tirado, talvez tentemos encontrar um pedacinho de alguém que alivie a dor de ver os contornos da vida a desbotar. Os outros somos nós, encontrar alguém é, no limite, encontrarmos as nossas cores, repescar os limites das fronteiras da nossa existência pessoal. Contar a minha história com as tuas palavras, caminhar com as tuas pernas, rir-me e ver em ti a imortalização de um passado. É bom. Chorar é admitir que sozinhos somos uma meia verdade. A amizade é um antídoto contra a morte, é sangue novo, todos os dias.
Às vezes, sentimos o mundo esmagar-nos contra uma parede quando o que precisávamos era o horizonte aberto para nos encontrarmos. Às vezes, queríamos que o sol nos emprestasse o brilho e a chuva arrasta tudo, nós e a nossa tristeza, inundação do ser. Às vezes queríamos poder querer mas logo se nos revela o impossível, sob a forma de uma certeza implacável. É duro não perceber a linguagem do mundo, não decifrar tantos sinais de coisa nenhuma. Somos todos aprendizes, foi-nos dado um cenário, uma face, agora lutemos por qualquer coisa. O quê? Queremos respostas, simplicidade que nos conforte mas a vida parece uma equação impossível, um mar por navegar. Sinto-me assim, às vezes. Preso em mim, com vontade de "inexistir", com vontade de morrer para este esquema, sentir uma leveza própria do que flutua, do etéreo. A diferença, um outro paradigma feito de escolhas, de livre arbítrio, das marcas da tua afirmação vertical. Eu escolheria não perder algumas pessoas, quem se ama deveria morrer ao mesmo tempo, num sono tranquilo, de frente para o fim, abraçados contra a morte. Sem medo do Infinito. Há pessoas que ainda falam comigo, pessoas de ontem e que, por isso, como dizia a Inês Pedrosa, são meus contemporâneos. Quebro as regras, parto as portas do tempo e decido insuflar-lhes um pouco da minha força, da minha existência e é vê-las ocupar os lugares vazios, os dias, as horas e as paisagens novas. Ao existirem em mim com teimosia desgovernada, fujo ao esquema do antes e depois, do esquema “Vida-Morte” e falo antes de Esperança construída com o suor de um Amor, esse sim imortal, longe de palavras e das coisas terrenas.
Vivo um desafio alucinado contra o tempo, vivo uma luta contra o esquecimento como fórmula de sobrevivência. Se sobreviver implica esquecer-me, não quero, não devo. Guardarei quem amo, ocuparei a minha memória até ela rebentar de exaustão, confundirei as linhas duras da realidade, viverei num mundo louco, mas meu. E todos os dias, Natal ou não, chorarei não por tristeza mas sobretudo por descobrir um coração que me torna maior que o meu tempo, me faz superar a minha condição, me torna "atemporal". É ao sermos em plenitude que perdemos o medo. Ao abrir os braços aos mortos do meu passado, às minhas perdas, resgato os capítulos do fundo negro do que "foi". Não há tempos verbais para os sentimentos, há coisas grandes de mais para serem capturadas pelos conceitos. O passado não foi. O ontem é parte do hoje, é o futuro lá ao fundo. Basearmos a nossa existência no presente é esvaziarmos a nossa identidade de um fio condutor, é aniquilarmos a possibilidade de uma narrativa, em tom épico ou lírico ou em silêncio. Andar para a frente nem sempre faz sentido, numa noite de Verão sabe bem abrir as portas da memória, deixar o calor dilatar os canais, deixar tudo ser parte de tudo, fundir as partes e as meias verdades numa completude vital.
A vida deve ser vista no seu conjunto, momentos cosidos num todo que espelha a tua cara, a tua individualidade, as tuas sombras e glórias. Assim nasceu a saudade, um olhar insatisfeito contra as barreiras do tempo. Se quisermos, nada é definitivo. Só é vasto o que é verdadeiro. Temos de fazer da memória a nossa defesa contra um absurdo impessoal, temos de fazer dela um lugar de origem, porto de abrigo contra a solidão. Nunca estaremos sozinhos se aprendermos a dialogar sem palavras, com os afectos perenes por quem nos acolheu em si. Trago quem amo em mim e não na realidade, supero as horas porque elas não entram em mim. A imortalidade é, afinal, consequência das leis internas do teu próprio mundo. Ordena, conscientemente, o fluxo de vida que se insinua em ti mas nunca te esqueças que parte de ti é herança, é legado, é dádiva por Amor.
Nunca me esquecerei de ti, és já parte vital, fazes parte do todo substancial que me constitui. Deixa que a respiração da tua subjectividade traga ordem ao caos, deixa que a multiplicidade complete os buracos que o presente parece não rematar, sozinho. Que cada um de nós seja transversal em relação à vida, às vivências. Se doer, é vida, se confortar, é vida. Afinal, podes ver sem janelas, podes, melhor ainda, rasgar-te de pontes que ligam as margens tão diversas do que és. Rejeita o tempo, torna-te imortal e inviolável de dentro para fora. Os que te amam defendem-te, não morrem no teu coração, são elemento e parte da tua carne.
Afinal, podemos estar sozinhos mas não somos nunca sozinhos se estivermos a tempo de abraçar aqueles que nos vêm afagar as costas, brisa com um cheiro familiar, cheiro do que permanece para lá dos abismos e das sombras. O Amor está acima do Bem e do Mal.


Sempre teu, A.


INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS

Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.

David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"

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