julho 24, 2009

Reflexões III

"Chamava-se Willy Muenzenberg e era o chefe da propaganda do Komitern para o Ocidente. (...)
A verdadeira história não é a história do poder e muito menos a história das ideias: é a história dos mecanismos de manipulação dos sentimentos que estão mais activos numa determinada época, de modo a integrarem-se e influenciarem 'o espírito do tempo'. Logo que o 'espírito do tempo' se instala na história, é assim uma espécie de epidemia: tal como a gripe que pega o doente e o são, o 'espírito do tempo' pega o inteligente e o estúpido. É fácil de ver que o marxismo, como filosofia, como teoria de pensamento, é de uma pobreza total, é uma filosofia para principiantes, no entanto, contaminou os mais brilhantes espíritos do meu tempo. (...)
Ele (Willy) tinha conseguido aproveitar e dar corpo a duas fontes de energia que vogavam perdidas no Ocidente: a culpabilidade dos filhos da burguesia que não conseguiam digerir os seus privilégios e o ressentimento plurigeracional do proletariado. Era preciso pôr essas energias em movimento dando à burguesia incomodada uma possibilidade de se redimir, encorajando na cabeça e no coração da classe operária essa inveja justiceira. (...)
Num mundo em que as velhas crenças tinham ruído, as igrejas estavam em crise e era preciso propor, não tanto novas formas de inteligência, mas novas formas de fé. O seu mecanismo de acção tinha que ser assim: primeiro, criar uma nova verdade para um mundo inteiramente descrente. (...) Portanto, primeiro ponto, a exploração da insegurança do mundo fornecendo-lhe uma verdade indiscutível. Foi uma operação subtil porque era necessário desacreditar as palavras que até então tinham feito apelo à nossa relação com os outros e arranjar outras que as substituíssem. (...) A mais evidente foi a substituição da palavra 'caridade' por 'solidariedade'. A palavra 'caridade', 'obras de caridade', estava de tal modo comprometida que nenhum de nós se atrevia a pensar que, desde a Idade Média, tinha sido o único lugar de refúgio e acolhimento dos que tinham fome de pão e até sede de justiça. Mas a 'solidariedade' era exactamente a mesma coisa. Era uma caixa de 'esmolas' que passaram a chamar-se 'contribuições'. (...)
O segundo passo era o mecanismo gerador de culpa e a oferta pronta da redenção. O mundo capitalista não nos levava ao inferno: era o próprio inferno, como o mundo socialista era o próprio céu. A burguesia não desgostava disto porque, por enquanto nada perdia e, com a sua contribuição, ia assegurando um lugar no céu que se aproximava. Repara: o mecanismo da verbalização dispensava-a dos comportamentos: eles podiam continuar a fazer a mesma vida, agora cheios de boa consciência, e a passagem do inferno para o paraíso não era cara: o que davam ao padre passavam a dar ao Socorro Vermelho. (...)
Eu disse ao Bernardo que aquilo que me fazia mais impressão eram os intelectuais. Como é que a maior parte dos homens inteligentes da geração que recebi eram pelos menos, companheiros de jornada. Ele sorriu da minha ingenuidade:
- Nós temos uma ideia muito falsa daquilo que chamam a 'classe intelectual'. (...) De toda essa multidão de intelectuais e artistas, em cada geração, há dois ou três que se libertam da história contemporânea e são capazes de descobrir os meandros da condição humana ou os novos rumos do mundo. (...) Vê, no nosso tempo, o que disse mais coisas, foi inteiramente desconhecido dos seus contemporâneos: o Fernando Pessoa, que andava a equilibrar a sua neurose entre os copos e os seus versos com a total indiferença das pessoas do seu tempo, pois poucos se deram conta de que ele estava a ajudar a descobrir o homem e a desenhar o futuro. (...) Como a maioria das pessoas não sabe juntar duas letras e vivemos todos mergulhados numa civilização material, eles têm pelos intelectuais uma admiração imediata, quase um temor reverencial e um convencimento generalizado de que eles estão na vida do espírito enquanto os simples mortais andam à volta com os seus interesses. E então, há uma receptividade especial, uma consideração imediata por esse mundo das letras e das artes com o qual se redimem aqueles que se julgam só entregues ao mundo da matéria. Willy dava-lhes a maior importância: os escritores, os artistas, os jornalistas. Sabia que seriam eles os novos arautos das suas ideias e que eles iriam pregar a redenção. De resto, esta foi a ideia de Lenine.
O Bernardo tinha a teoria de que foi no ano de 1921 que se revelou a Lenine a estratégia de exploração dos traumas da burguesia (...) e pensou que seriam os escritores os interlocutores e propagandistas indicados para essa operação. Foi quando pediu a Gorky que, como escritor, fizesse um apelo a Herbert Houver, então Secretário do Comércio americano e responsável pela American Relief Administration, pedindo-lhe ajuda contra a fome que atingia 25 milhões de pessoas. O pedido do escritor - o tal temor reverencial dos ignorantes perante a cultura é outro filão a explorar - revelou-se duma rentabilidade inesperada. (...) O seu valor propagandístico e a sua função de recepção e suporte da imensa má consciência da burguesia ocidental incomodada era incalculável. Willy queria comprometer, material e emocionalmente, as pessoas numa causa épica e envolvente, sabendo que o 'sacrifício' robustece o vínculo que com ela se cria. Willy proporcionou ao Ocidente culpabilizado a instituição que lhe daria a redenção e o perdão. "
In: O Riso de Deus, António Alçada Baptista

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