julho 15, 2009

Reflexões II

"Voltei-me para o André e perguntei-lhe:
- Será que a liberdade é, para ti, um valor?
O André hesitou. Pensou talvez nos tempos em que eu andava por aí a combater a ditadura e ele, imperturbável, a tratar do seu escritório com o Martim, vai-não-vai para a guerra colonial. Mas disse:
- É. Acho que é. (...)
Noutro dia o Lemos dizia-me, no tempo em que os comunistas falavam, que era um homem livre porque tinha sido livre a escolher o comunismo e livre a praticá-lo. Eu disse-lhe: 'Não. Livre, livre era o Staline, porque era ele e não tu quem fazia as normas do Partido.' Eu acho que a maioria das pessoas tem uma noção de liberdade parecida com a do Lemos. Por mais estranho que pareça, homens livres, para quem a liberdade é efectivamente um valor, são os que estão presos por causa da liberdade dos outros.
O Tomaz perguntou, interessado:
- E os outros, Francisco? E os outros? Como é que tu sentes que a tua salvação passa pelos outros?
- Não sei bem. Enquanto não souber, amando-os, respeitando a sua liberdade. Recuso é aquela dos pobrezinhos. Acho que o chamado progressismo cristão é um exemplo claro da crise da relação com a transcendência. Descobri a certa altura que os cristãos progressistas, independentemente do fascínio pelo poder, que nunca agradou a Cristo, tinham uma concepção estranha da vida, como se a salvação do mundo se concretizasse num imenso panelão de sopa, de preferência à porta de uma igreja, e eles, de avental de riscado, todos contentes, a deitarem uma concha de sopa em cada prato, duma fila do tamanho da população do mundo...Eles não repararam que, como os calvinistas com o dinheiro e o trabalho, estavam a fazer da pobreza dos outros um absoluto, um meio de salvação. Ora a pobreza dos outros não é um absoluto, é um absurdo: temos é que saber como se comunica com Deus num mundo sem pobreza.
O Tomaz insistia: - Mas os que sofrem, os que têm fome?
- Para ajudar os que sofrem e os que têm fome não é necessária uma religião. A fome e a violência são absurdos de tal modo estampados na cara do mundo que, quem a isso não é sensível, é porque não se chegou a integrar na espécie humana."
in "O Riso de Deus", António Alçada Baptista

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