dezembro 11, 2009

'Irene ou o Contrato Social'

"O prazer de fazer mal porque faz doer, o simples prazer de dor num pontapé num gato, queimar um pau numa carne, cegar um pássaro nos dois olhos com um fósforo, porque sim. (...) Nunca gozara da dor pensada para causar gozo. Sendo objecto disso, desse mal, do mal, nunca usara disso a frio, excepto pela retracção. E o mal também pode ser isso. Deixar, sem saber deles, a crueldade, o mal acontecerem.
(...)
A vigília súbita, indício do pavor de estar a regressar a uma diversidade do ter sido, do vir a ser? A paisagística de um ter sido, de um devir? Esses estuários, ravinas, moradas, à vez reconhecidos e ignotos como os de um anjo? Sonham os cegos, como que vêem noutras partes?
Se o sonho é só a realização de um desejo, como os seus lugares são tenazes, são fugazes. Já estive aqui.
Esse aqui, ao esfumar-se, despedia cada objecto da vigília, do regresso ao mesmo mesmo.
(...)
A casa agora podia cair no mais medonho dos desleixos, no mais carregado dos silêncios com vozes. (...) Como saber se o desleixo é um sintoma mórbido, ou o sinal de uma vocação transida de despojamento?
(...)
Eu, que tanto fui lendo, por que não poetizo? Por que é que Irene não quer contar? Se até o queixume se modula. Em vez, ouve ofensas, lacera-se com o mal vivido, como se deixar-se deteriorar sem azedume fosse uma vingança. Não era. A única vingança é estar bem, dissera-lhe António Aurélio, diz na sua cabeça pendente no livro que não lê, que ela não tinha a coragem do quotidiano.
(...)
A memória só faz rasgões e lendas. Quando o explicado é da ordem do vento, só resta ao explicador o gozo de penetrar o ar. Coisa pouca. The air, the air is everywhere."

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