"O diabo é um título das nossas esperanças. Quanto mais elas são ardentes, mais nelas arde o diabo, sem se consumir, como é próprio do seu espírito. Temei os que muito amam; eles são destinados a cometer os maiores erros. Muito ama o diabo; é esse o seu maior castigo e o que o carrega de cadeias para a eternidade.
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Um homem que enriquece perde a proporção da confiança em que a fortuna se gera. Assim, onde a classe média teve de facto o seu apogeu, na cidade do Porto, ela nunca se deixou arrastar pela obsessão da beleza que caracterizou o francês do século XVIII. Mais tarde caiu no coleccionismo, um abastardamento da aspiração ao belo. É de crer que o burguês adquiriu mobiliário de preço quando se explorou as suas ideias jacobinas e quis disfrutar não só da doçura de viver palaciana, em que um fauteuil perdia a alma de qualquer cortesão, como quis livrar-se da severa atitude do contabilista diante da sua pupitre com vista sobre o cais dos bacalhoeiros ou sobre a Rua dos Ingleses.
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Uma grande família, no sentido de acumulação de bens e prestígio que isso acarreta, no sentido de duração e informações fixadas pela memória afectiva, é favorável a manias e outros tipos de alienação. A família é uma forma de sequestro; e o sequestro desenvolve sonhos eróticos e de glória, devoções extáticas e rasgos patrióticos em geral susceptíveis de discordar do sólido julgamento das pessoas.
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Uma mulher que envelhece dá a impressão duma múmia enrolada nos seus preconceitos, como diz Toulet, poeta pouco discreto mas inteligente.
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Todas as famílias são fertéis em tensões e desajustes; é assim que elas completam a sua permanência e que dão mostras de existir para uma coisa primordial e única que tanto pode ser a doença da casa como o objectivo duma casta. Sem conflitos a família não subsistia; os filhos tornavam-se selvagens e desproporcionados às relações que lhes compete instaurar no futuro e que são fruto das decepções da infância. Corrigir o mundo, melhorar a sociedade, quer dizer que se sofreu desarmonia a muitos níveis, entre mãe e criança, entre marido e mulher. (...) Francisco António sabia que a mãe não o amava; ele era apenas alvo de manipulação moral, como é, de resto, vulgar no âmbito familiar de estrato mais elevado. Daí que todo o seu período de crescimento se fizesse no sentido, não de modificar o mundo, mas de lhe causar alguns problemas.
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A baronesa defendia-se de todo o género de possessão, dispondo de dinheiro suficiente para ostentar a virtude. Eu não sei se esta liberdade compensa da outra, que é não estar-se sujeito ao ouro; mas em todos os poderosos em bens materiais tem que haver essa ambição que é escapar às paixões com o exorcismo do dinheiro.
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A limpeza faz a organização dos limitados em matéria de desejos do corpo e da alma. É por isso que em lugares santos se pode ler às vezes: A limpeza, Deus a amou, o que é inteiramente falso. Cristo não lavava muito as mãos para comer, nem receava tocar nos cadáveres. Alguma coisa há no que é imundo que beatifica o coração, permitindo-lhe resolver os seus impedimentos de amor e de aversão. O certo é que Eugénia só se vestiu bem duas vezes na vida: quando casou e quando morreu.
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As boas ficções fazem as realidades mais saborosas, e, se não fosse o que os outros nos fazem errar sobre eles, a vida era menos interessante. A verdade, que eu saiba, não é virtude.
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Este livro trata de vários estados de culpa, e por isso se despenha do alto da história humana como do alto duma montanha que convém escalar; para ter acesso à culpa é preciso ter-se acesso à sensibilidade da história; sem isso, o que resta é um terrível espaço em que tudo cabe e nada povoa.
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João Mendes chegara ao ponto em que a ostentação não é mais provocação ou ajuste de contas; é só um diálogo como a morte porque se tomou o sucesso como certo.
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As mestras eram mulheres decentes de trato comum e afável; inspiravam confiança ao desanimar o medo, que é o que mais corrompe o corpo vivo dos homens; e mais o salva, bem entendido. Era vulgar ver as mestras a cruzar os caminhos de Ranados, vestidas sem luto nem pobreza, preferindo cores claras e ouro amarelo, sempre sorrindo de leve, e nisto estava muito do seu poder. Onde há riso, há esperança.
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Já Lena dizia, a Lena de Buchner, que há pessoas que são infelizes, simplesmente e irremediavelmente, porque o são. As Mestras conheciam, acima de tudo, essa disposição natural para a infelicidade. Digamos que a tinham percebido na casa da Malhada.