julho 31, 2010

Eugénia e Silvina, Bessa-Luís.

"O diabo é um título das nossas esperanças. Quanto mais elas são ardentes, mais nelas arde o diabo, sem se consumir, como é próprio do seu espírito. Temei os que muito amam; eles são destinados a cometer os maiores erros. Muito ama o diabo; é esse o seu maior castigo e o que o carrega de cadeias para a eternidade.
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Um homem que enriquece perde a proporção da confiança em que a fortuna se gera. Assim, onde a classe média teve de facto o seu apogeu, na cidade do Porto, ela nunca se deixou arrastar pela obsessão da beleza que caracterizou o francês do século XVIII. Mais tarde caiu no coleccionismo, um abastardamento da aspiração ao belo. É de crer que o burguês adquiriu mobiliário de preço quando se explorou as suas ideias jacobinas e quis disfrutar não só da doçura de viver palaciana, em que um fauteuil perdia a alma de qualquer cortesão, como quis livrar-se da severa atitude do contabilista diante da sua pupitre com vista sobre o cais dos bacalhoeiros ou sobre a Rua dos Ingleses.
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Uma grande família, no sentido de acumulação de bens e prestígio que isso acarreta, no sentido de duração e informações fixadas pela memória afectiva, é favorável a manias e outros tipos de alienação. A família é uma forma de sequestro; e o sequestro desenvolve sonhos eróticos e de glória, devoções extáticas e rasgos patrióticos em geral susceptíveis de discordar do sólido julgamento das pessoas.
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Uma mulher que envelhece dá a impressão duma múmia enrolada nos seus preconceitos, como diz Toulet, poeta pouco discreto mas inteligente.
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Todas as famílias são fertéis em tensões e desajustes; é assim que elas completam a sua permanência e que dão mostras de existir para uma coisa primordial e única que tanto pode ser a doença da casa como o objectivo duma casta. Sem conflitos a família não subsistia; os filhos tornavam-se selvagens e desproporcionados às relações que lhes compete instaurar no futuro e que são fruto das decepções da infância. Corrigir o mundo, melhorar a sociedade, quer dizer que se sofreu desarmonia a muitos níveis, entre mãe e criança, entre marido e mulher. (...) Francisco António sabia que a mãe não o amava; ele era apenas alvo de manipulação moral, como é, de resto, vulgar no âmbito familiar de estrato mais elevado. Daí que todo o seu período de crescimento se fizesse no sentido, não de modificar o mundo, mas de lhe causar alguns problemas.
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A baronesa defendia-se de todo o género de possessão, dispondo de dinheiro suficiente para ostentar a virtude. Eu não sei se esta liberdade compensa da outra, que é não estar-se sujeito ao ouro; mas em todos os poderosos em bens materiais tem que haver essa ambição que é escapar às paixões com o exorcismo do dinheiro.
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A limpeza faz a organização dos limitados em matéria de desejos do corpo e da alma. É por isso que em lugares santos se pode ler às vezes: A limpeza, Deus a amou, o que é inteiramente falso. Cristo não lavava muito as mãos para comer, nem receava tocar nos cadáveres. Alguma coisa há no que é imundo que beatifica o coração, permitindo-lhe resolver os seus impedimentos de amor e de aversão. O certo é que Eugénia só se vestiu bem duas vezes na vida: quando casou e quando morreu.
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As boas ficções fazem as realidades mais saborosas, e, se não fosse o que os outros nos fazem errar sobre eles, a vida era menos interessante. A verdade, que eu saiba, não é virtude.
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Este livro trata de vários estados de culpa, e por isso se despenha do alto da história humana como do alto duma montanha que convém escalar; para ter acesso à culpa é preciso ter-se acesso à sensibilidade da história; sem isso, o que resta é um terrível espaço em que tudo cabe e nada povoa.
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João Mendes chegara ao ponto em que a ostentação não é mais provocação ou ajuste de contas; é só um diálogo como a morte porque se tomou o sucesso como certo.
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As mestras eram mulheres decentes de trato comum e afável; inspiravam confiança ao desanimar o medo, que é o que mais corrompe o corpo vivo dos homens; e mais o salva, bem entendido. Era vulgar ver as mestras a cruzar os caminhos de Ranados, vestidas sem luto nem pobreza, preferindo cores claras e ouro amarelo, sempre sorrindo de leve, e nisto estava muito do seu poder. Onde há riso, há esperança.
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Já Lena dizia, a Lena de Buchner, que há pessoas que são infelizes, simplesmente e irremediavelmente, porque o são. As Mestras conheciam, acima de tudo, essa disposição natural para a infelicidade. Digamos que a tinham percebido na casa da Malhada.

julho 26, 2010

julho 23, 2010

julho 21, 2010

As Irmãs de Maria Madalena

Quina, a Sibila

"Como a dor física, todas as outras ela esquecia depressa e, mesmo ao vivê-las, fazia-o já com antecipado desprendimento. Contudo, o seu coração era generoso e grande; só que, talhado para a vida, toda a violência dela, todas as suas ciladas ao que é indefeso e fraco, esse coração possuía um revestimento de pessimismo que o fazia quase invulnerável.
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O sofrimento está sempre aliado a uma emoção violenta - uma surpresa, o destruir dum hábito que nos prometia estabilidade. De resto, a morte de um velho não inspira dor a outro velho - inspira pânico.
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E um dos aspectos mais característicos de Quina era desprezar por princípio todas as mulheres. Não que pessoalmente as odiasse, mas, na generalidade, atribuia-lhes uma categoria deprimente, e, como elemento social, não as considerava. A verdade era que, toda a vida, ela lutara por superar a sua própria condição, e, conseguindo-o, chegando a ser apontada como cabeça de família, conhecida na feira e no tribunal, procurada por negociantes, consultada por velhos lavradores que a tratavam com a mesma seca objectividade usada entre eles, mantinha em relação às outras mulheres uma atitude não desprovida de originalidade. Amadas, servindo os seus senhores, cheias dum mimo doméstico e inconsequente, tornadas abjectas à custa de lhes ser negada a responsabilidade, usando o amor com instinto de ganância, parasitas do homem e não companheiras, Quina sentia por elas um desdém um tanto despeitado e mesmo tímido, pois havia nessa condição de escravas regaladas alguma coisa que a fazia sentir-se frustrada como mulher.
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Enfim, Germa e Quina compreendiam-se bem demais, cada uma delas via na outra a sua própria personalidade, como num espelho que não tem os jogos de luz da benevolência para lhe adoçar os ângulos e esbater as deformidades. Cada uma via na outra os próprios defeitos e virtudes e, uns porque não gostavam de os contemplar em outrem a nu, outras porque antes quisessem tê-las como originais, isso fazia com que mutuamente se detestassem, pois nós sempre tomamos como vexame a cópia do nosso eu.
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Nunca se pode tratar mal os filhos dos nossos amigos, porque isso é como esbofetear os mortos. As coisas feias são tão próprias do mundo como as bonitas. Tu és muito nova, e, no colégio, não fazem outra coisa que tapar-te os olhos - o que é um engano, menina. Conhecer o mal é já uma defesa. Onde não há inocência, pode haver pecado; mas onde não há sabedoria, há sempre desgraça.
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Mudar de hábitos e de lugar, que é senão uma fútil maneira de encarar a morte?
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Quina revelou-se-lhe, afinal, possuidora de todo o puro enigma do ser humano, vórtice de paixões onde subsiste, oculta, nem sempre declarada, às vezes triunfante, uma aspiração de superação, alento sobre-humano que redime e transfigura. Dedicou-lhe homenagem e, se não a amou, nela aprendeu toda a história do homem, e, recordando-a, deu-lhe a eternidade do seu coração.
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Ela denunciava agora um completo desdém pelas relações, os atavios, todo o dispêndio de forças, a contrariedade de gostos que durante tantos anos, imolara à sociedade. Atingia a filosofia de mulher que se aposenta, deixara de lutar pela entente cordiale entre ela e o mundo, e, vendo a vida esgotar-se-lhe, exigia-a apenas para uso próprio, não desperdiçava um minuto com maneiras melífluas ou cativantes sorrisos, porque já não esperava o juro desses gastos.
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Tinha cinquenta e oito anos, mantinha-se com uma esbelteza de rapariga, se bem que um tanto corcovada e de cabeleira totalmente branca. Estava ela no apogeu das suas faculdades de administradora, de discernimento e de vivacidade. Sabia fruir o prazer da lisonja, sem lhe ceder os seus interesses; sabia ser cauta, sem deixar de ser audaciosa. Sabia ser generosa sem prejuízo seu e sem estabelecer entre ela e o desafortunado ou o vencido essa espécie de ralações odiosas, comuns no mundo dos que mutuamente se espoliam e degradam. Estava perfeita no seu cargo de sibila, pois conhecia a alma humana de dentro para fora, o que é talvez prever sempre nela o imprevisível, sem porém, chegar a compreendê-la. Era uma fortaleza de prudência cuja torre de menagem era sempre a vaidade. (...) Ela era incapaz de qualquer forma de desinteresse. Quando amava, era porque o troco de reconhecimento a compensaria em larga escala. Quando recebia um desagradecimento ou uma injúria como paga, sofria, não como quem é ultrajado, mas como quem foi espoliado do seu capital; e não hesitava em arriscar novas paradas sempre mais generosas e temerárias, para o recuperar. A sua caridade não tinha, portanto, esse cunho de vileza que caracteriza as mais pias acções movidas pela piedade ao ser inútil e indefeso. Era sempre um negócio, sempre um contrato em que a moeda era a reciprocidade de sentimentos. Não havia esmola e pedinte, protector e socorrido. Havia só duas criaturas que se defrontam sobre a face da terra, e lealmente fazem a permuta dos seus bens - pão por alegria, um sorriso por um conforto, admiração por um valor. Nada pertence ao homem do que lhe é dado aceitar, nem o seu destino, nem a sua aptidão, nem a sua fé, nem a sua alma. Tudo ao homem entrega, e dele recebe a sua própria consciência. Somente, Quina, com o seu instinto de lucro que lhe era peculiar, esperava sempre dos outros um pouco mais. E até ao fim da vida arriscaria sempre um pouco mais para o receber."

julho 11, 2010

julho 04, 2010

julho 02, 2010

Clube Nocturno.

Um pedaço de céu coube inteiro no corpo maleável de um sonho primaveril -
havia uma luz mansa a cobrir-lhe as pálpebras e chegou a ser um aviso ao contrário, bom, como uma verosimilhança nascida de uma confissão inconsciente, a meia luz, sem registo de dia, sem tempo; só tempo pela sua absoluta negação. Um corpo demorou-se nessa ausência de planos, tarefas, objectivações impertinentes. Ser-se um nada para o mundo, lá fora, enrolado como um feto na recriação de um ambiente primitivo sempre em contraluz, lá, dentro da casa onde tudo acontece, lhe acontece. Havia um quarto crescente dele, o céu ao dispor da imaginação, até ali cega de mundo mas curiosa como uma folha branca, ao vento entre as partes impossíveis de uma possibilidade a cozer em lume brando, registo primeiro de experiência. De olhos bem fechados é que era bom, não digas à vida, ela não gosta de opiniões como passos em cima de séculos iguais, rasto absolutamente seguro. Não te agudizes, não acentues a tua presença se o barulho do pensamento incomoda os vizinhos. Sente-se o peso do andar-se em cima das vigas de um edifício histórico, já sabias quando te arrendaram o espaço. Em sonhos és só tu como o és também até àquela fracção de segundo em que o outro te invade o corpo inocente e te toma como mais um na corrida pelo tempo certo, pelo tempo, só. Jurou que era a campainha que se insinuava entre ele e a sua conversa mas o quarto ainda é longe da porta de entrada. E ele não quer sair, se faz favor, é um aviso, sim, vá sem mim que eu já o apanho quando souber de mim.
Um homem procura parte de si, debaixo da cama não há nada, sempre o tentaram convencer, fazer crescer é assim, segundo consta. Acordou como que renascido para uma mesma morte, a da noite anterior, entre lençóis brancos como as insónias. O vizinho de baixo viera avisá-lo que a fruição de espaços comuns na vida tem um preço como o de uma suspeita calada, subornada.
Dê-me uma cópia da sua chave, não é seguro que se tranque sozinho, aqui, longas horas sem sabermos de si. Não é justo, sabe? Não lhe digas que não é bem assim, ele chama já os companheiros de jogo e nem debaixo da cama poderás guardar-te. E ele não quis sair, se faz favor, não volte mais ou eu não o deixo continuar a dormir logo à noite, com o silvo de um monólogo que nem eu sei como começou e porque teima em não adormecer.