fevereiro 25, 2011

Os Meninos de Ouro.

"Aos quinze anos era já uma mulher de negócios e casou com um primo, não sem agrado, para resolver uma questão de extremas e arredondar o património. Esses casamentos com primos não eram apenas uma táctica financeira, mas correspondiam a um preconceito próprio; resumiam a fidelidade tribal que prefere sempre as alianças muito provadas na mesma raiz e nos mesmos hábitos. O primo era como o irmão para as dinastias egípcias: reunia o discurso da consanguinidade que afinal dispõe de todos os meios para prevenir a política dos partidos, e tinha a vantagem de produzir uma só memória histórica, o que era fortalecer a autoridade do clã.
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A insignificância, espécie de vagalume dos pobres, arrebatou-os para as cidades, onde a vida simula melhor a consolação; os benefícios urbanos parecem compensações feitas à mediocridade.
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O ciúme é mesmo essa vigilância do orgulho sobre a fraude de um contrato sem regras.
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Pode-se morrer do abuso da vida, como do abuso do amor.
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Farina sabia que um diabo mau tem sempre mais possibilidades de ser seguido, do que um diabo bom. O primeiro possui desejos de poder e de vingança comuns a todos; o segundo só pretende comparar-se a alguém. (...) Só Farina sabia que para tornar irresistível qualquer movimento descrito pela razão era preciso que a paixão o animasse. (...) «Quando se localiza o medo de alguém - dizia - tudo é permitido.»
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Os homens sabem que o amor é uma coisa divina, feita para gente divina; e, por isso, matam, porque não são divinos nem suportam interpretar o amor como uma farsa vulgar.
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Quando se ameaça, há menos probabilidade de se ser escutado, do que quando se pressagia.
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Amava-o e já não via nele as limitações, ou não queria convencer-se de que elas eram apenas isso; achava que os grandes homens têm todos uma maneira pouco gloriosa de se entenderem com eles mesmos. (...) Perguntou-se o que era afinal amar alguém, e achou resposta. Era temer, sobretudo; os seus dias tornaram-se inferiores, mas não os trocava por outro tempo sem inquietação. A dor vivia com ela, como uma ama carinhosa.
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As coisas que mais nos inspiram não as devemos ter sempre. A terra onde o sol brilha continuamente decerto não tem poetas.
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Quando Canetti imagina o acesso de fúria do ladrão a quem tudo é dado, não lhe restando nada para roubar, está a descrever uma sociedade em que a permissão deixa o homem desprovido do interdito e do desafio que ele implica. Essa sociedade só tem como saída a fúria, criando a interdição noutros moldes revestidos de um carácter predador mais acentuado. O objecto dado tem que ser recusado como tal, para ser incluído no quadro todo-poderoso do desejo humano.
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A divulgação maciça de todos os segredos deu-se com o auxílio laborioso dos meios de informação, do pessoal docente, das equipas de regionalização cultural. Os mecanismos da civilização, mais delicados do que se supõe, sofreram uma agressão profunda; a natureza íntima das pessoas foi sujeita a uma devassa constante; em vez de, com a proibição do segredo, se libertarem dos complexos, estava-se em vias de produzir-se uma catástrofe difícil de remediar: a figura cultural que é o mistério humano era estilhaçada, o mistério como acesso ao desejo; restando apenas e para sempre, o enigma como castração, porque depois de tudo revelado, a horas e tempo consecutivo e didáctico, o controlo natural da excitação torna-se só possível através de uma política sexual de frustração.
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Toda a perversão é uma sublimação que se não domina.
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O caudilho burocrata também não se lhe adaptava; este foi o que proliferou no funcionalismo público antes e depois do 25 de Abril - o que é incapaz de decidir por si mesmo, que gosta de mandar mas precisa de estar sob controlo para se sentir seguro, algo que lhe garanta o emprego, os negócios e a rotina da sua papelada, do seu café ao meio da manhã, do seu proteccionismo sem grande envolvimento.
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Ela conhecia o amor religioso da limpeza, que se reveste de um elemento destruidor, possessivo, moderado pelo benefício da simetria, e da identidade com o efeito da ordem e da beleza. A máquina quebrou a relação com o objecto-propriedade, o seu contorno, a sua matéria; a pele, os dedos, a mão, não mais podiam tocar directamente o símbolo que é o objecto escolhido, lâmpada, vaso, taça, caixa, relógio, móvel e seus embutidos e puxadores, suas faces de espelho, suas gavetas e torneados.
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O bom carácter do povo português provém da sua ignorância. É possível que os governantes, saídos da toga e da espada, o soubessem eventualmente a partir das situações históricas que eram tão mais fáceis de resolver se não se entrava em detalhes. A instrução permite que se considerem os detalhes.
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Esses Wiesel eram vistos como exemplo de desordem, mas, ao todo, concediam-lhes um mérito heráldico substancial, porque todo o grande nome tem necessidade da sua excentricidade e mesmo da sua mancha, para assegurar a grandeza que nem só a boa reputação fomenta.
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O facto de Marciana aparecer em Corfu como levada na barca de Ulisses, com o seu frasco de pimentão andaluz e a sua colher de mexer ovos moles, daria que pensar se não repararmos que os latinos gostam de viajar com a sua cozinha, como os anglo-saxões com o bule de chá. O cúmulo do conforto para um português é levar para o estrangeiro a sua criada, a sua botica e o número de telefone do seu merceeiro. Ouvir falar a sua língua, sobretudo com os doces provincianismos e fraquezas pouco doutorais, dá uma confiança no destino como nenhuma outra protecção da embaixada.
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José pensou quanto as coisas humanas são inevitáveis e dolorosas se repararmos nelas já fora da sua afinidade. Agora parecia que cada um tinha um destino absurdo, uma vez desligado dos factos que ele centralizara.
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Não lhes perdoava o terem situado a Revolução no domínio do ilusório que se descreve no princípio do prazer; as primeiras declarações feitas à Nação (que inclusive excluíam a necessidade da violência, porque o poder total, relacionado ao princípio do prazer, destitui o inimigo da sua realidade) diziam-lhe quanto a lógica do domínio transbordava daquelas vozes comovidas e que produziam um efeito alucinatório.
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E, no entanto, quem sabia alguma coisa de Ana de Cales? Todas as almas raras têm qualquer coisa de deseducado; as mesquinhas reconhecem-se quase sempre pela tendência à perfeita educação. Aquilo que toleravam mal em Ana, e que todo o seu ouro não conseguiu desculpar, foi a rudeza quase selvagem que nela, se não quisermos falar de grande alma, era propriedade de uma obstinação - o gosto dos negócios. Toda a obstinação cria essa impermeabilidade à imitação; e sabemos que não há perfeita educação sem o sentido imitativo; não há cortesia sem intenções colonizantes.
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Ela bebia chá continuamente, e Mateus acompanhava-a nisso que era já um tique de família. Também tia Carmina tomava muito chá e, quando ela morreu, Hipólita recebeu como herança aquele pequeno vício. Era uma maneira de perpetuar a imagem da irmã. Agora que estava muito velha e prestes a deixá-los, Mateus e Dessert adquiriam as manias que a tinham identificado - e bebiam chá, a horas soltas do dia; o toque da porcelana, o tilintar da colher recuperava a infância nos seus signos e nas suas presenças.
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Quando Mateus partiu, ela sentiu que as coisas mais importantes não são ditas, porque, afinal, nunca se confia em ninguém tão completamente. Confiar assim seria um acto de coragem desesperado. "

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