fevereiro 23, 2011

Prazer e Glória [III].

"De resto, onde houvesse uma tendência a comparar havia a tendência a trair. (...) Enquanto as mulheres não saíssem de casa e não tivessem oportunidade de comparar o seu marido com os outros homens, elas seriam fiéis, ou relativamente convencidas à fidelidade. Doutro modo, era impossível detê-las; a livre concorrência dos costumes seria inevitável.
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Tornara-se receosa em parecer directa e com essa fantasia erótica que dá às mulheres do povo um atractivo em que se recusam mais do que oferecem. Elas sabem quanto se fazem desejar, e isso completa o seu apetite sem chegarem a ter ajuntamento. Assim havia virgens de oitenta anos, sempre alerta para a palavra que provoca sem que haja experiência nem ligeireza de costumes. Tudo quanto queriam era despertar a imaginação dos homens, acto mais criador do que o que gera um filho no ventre.
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Ela sabia que há pelo menos um momento na nossa vida, entre o amor e o respeito, em que o novo condena o velho e o faz perecer na imaginação; e o representa aos seus olhos caído para sempre, frio e pronto a quebrar-se o laço que era tão apertado. Uma espécie de iniciação, para que o sofrimento se aprenda e depois não fira tanto.
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Durba evitara sempre o grupo, porque o achava uma forma de abastardar as relações. Gostava de ligações em que a prova dos seus poderes não sofresse com os direitos da experiência comum. Em amor não era democrática e distinguia os favores como princípios do desejo e não como condescedência do convívio. Ela punha um acento no que era prática de amigos e licença de convivas. Desse modo não se prostituía completamente e guardava o decoro dos seus vícios que era não lhes dar espectadores, mas só participantes. (...) Tudo o mais, homens e cultura que ela gastava de boa marca como os produtos da sua maquilhagem, eram o disfarce das argoladas que soavam no coração dela. Sobre o vazio que Durba não podia preencher e domar; um vazio como uma fera, bocejando, caindo em letargo, herdado de milenárias catástrofes que a tinham acostumado à desproporção entre o corpo e a alma.
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A dor não se aprende, não se usa como um vício e se tira dela pimenta e cinamono para temperar a solidão. A dor. Que sabia ela da dor?
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Mário Orta mantinha ainda a cumplicidade com o luxo; era a sua pequena mania, que evitava as obsessões maiores.
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Durba disse: - A morte é mais impudica do que o amor. Nunca se chega, no prazer, a esta evidência de que nada merece ser vivido e pensado. (...) Ela estava a olhar para uma mulher desmazelada que levava na mão uma alcofa e sabia de cor todas as respostas da missa. "Nunca se engana, e isso dá-lhe uma espécie de superioridade." A mulher, ao cruzar-se com Durba, deitou-lhe um olhar soberano. Nenhuma rainha, ao passar revista aos seus lanceiros, tinha aquele olhar poderoso e formidável de convencimento e de orgulho. "Será que a fé é um método para resistirmos às nossas realidades? Inventamos a fé para nos protegermos do vazio que é, no fundo, um elo forte que nos liga ao divino." (...) Às vezes a multidão tornava-se insuportável, e aquele rosto da rua, sem expressão humana, parecia-lhe causador dum sentimento de violência. Era essa pressão da gente que se cruza sem qualquer espécie de garantia de ajuda mútua e de espontaneidade amigável. Ela conheceu um negro, numa loja de artigos de alta fidelidade, que lhe pareceu um exemplo dessa desordem moral e mental em que a grande cidade sepultava as pessoas.
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São coisas paralelas, o amor e o que nos fala dele. Elas são até mais importantes. Tudo junto é que faz o amor. (...) Não se amam as mulheres por serem cruéis e de coração frio; mas porque há na carne e na alma dos que se dizem maus uma competência para arrastar o carro da vida que não se encontra nas criaturas doces e sacrificiais. (...) Uma mulher é um trajecto silencioso.
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Era ainda a sua cultura histórica em auxílio duma depressão, duma angústia. Quando já não havia esperança, as pessoas mergulhavam no passado como num banho morno, e deixavam que todos os membros ficassem protegidos nessa espécie de lava do passado.
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A infelicidade dos outros era uma espécie de ganho que ele contabilizava com uma certa arte de ladrão, como se desses sofrimentos ele se excluísse e ficasse mais rico por isso mesmo. O mundo agia como ele; ao ampliar o conhecimento das dores humanas, fortalecia o seu próprio egoísmo. (...) Ninguém, no seu entender, era digno de comparecer perante a sua arte, e guardava pelas pessoas todas uma animosidade resultante de que podiam ter acesso à sua obra, porque lhe iam sobreviver, a ele, o autor. Se pudesse, levava com ele quadros e estátuas como os faraós faziam com os seus pertences e coisas de uso pessoal de maior afeição. Elas continham a alma da personalidade, carregavam o enigma do movimento que servia a necessidade, e não podiam ficar no mundo, ao acaso doutro uso; ou, então, o defunto não deixaria mais o lugar em que estavam os seus objectos, para os proteger da violação dos intrusos, os vivos.
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[Durba] estava a ficar cabeçuda e pregada numa ideia que era a de viver de uma forma apocalíptica, isto é, experimentando a solidão como meio de sobrevivência. Ela entendia que nas eras mais ameaçadoras, em que tanto a natureza ou os sistemas punham em risco a sociedade, o homem desenvolvia a arte de ser solitário. Pela ascese ou pelo simples comportamento robinsoniano. Como se tivesse que ficar no mundo sem apoio de nenhuma espécie e devesse subsistir assim. Achava que se aproximava uma era dessas, e não havia tempo a perder para conhecer as possibilidades da solidão. O tipo de inquérito de magazine, como, por exemplo, "O que levaria para uma ilha deserta?", parecia-lhe revelador duma preocupação profunda. Ela respondia: "Uma faca e uma espingarda", o que exprimia a agressividade como última medida de protecção.
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O que era a pornografia? (...) A pornografia designa uma forma de violência. Desde que um acto, sexual ou outro, como a tortura, por exemplo, informa desse abuso feito à nossa cumplicidade de ser nada e na qual se funda a nossa liberdade, a pornografia consuma-se. Não é o facto em si que é pornográfico, mas a sua forma de convivência com a comunidade, a sua explosiva intervenção, a sua dinâmica interrogativa mesmo quando não é acusadora.
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Não há império maior do que o que se tem sobre os vícios dos outros.
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Ser demasiado inteligente serve para chegar mais depressa ao caminho dos brutos.
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Ela sabia que o erotismo da culpa era mais actuante que a integridade absoluta.
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Mas Cip tinha outras ambições; ou antes, ele preferia o signo, bem português, de interromper as ambições com uma espécie de fuga ao sucesso.
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- E se Deus não fosse imortal? Se ele partilhasse a nossa mortalidade, como ficou dito e pouco entendido, e pouco amado como a proporção duma justiça que nos convém? (...) Porque, em geral, comportamo-nos à medida do Deus imortal, no mau exemplo da imortalidade; como se tudo pudesse ser recomeçado, como se destruir e odiar fosse só um exercício que a História pulveriza. Se eu dissesse: "Morro hoje, ou depois de amanhã, era sensata ou insensata, mas não escolhia ninguém como inimigo. Somos inimigos porque há em nós uma irreverência de imortalidade. Quem não acha que vive sempre até depois de morrer? E isto limita a generosidade."

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