"Quando se cansava dos livros, ou lhe escorregavam das mãos, incapazes de a entusiasmarem, procurava na Internet frases-corrimão às quais se pudesse agarrar. Corrimãos cada vez mais frágeis; as palavras pareciam velhas, secas, exaustas pela tentativa de mudar o mundo. Possuíam uma capacidade inflamável, talvez por nunca serem capazes de absoluto.
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Quando cantava, Rosa sentia que a voz se separava de si e subia os degraus de uma escada de luz. Era ela quem cantava o fado ou o fado que a cantava? Cantando, deixava de ser rouca e de tropeçar nas palavras. O seu sofrimento tornava-se alto como a noite e tão perfeito que encontrava assim uma forma de consolação.
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Só o amor que Gabriel originara nela, um amor escuro, imóvel, feito da matéria da música e das palavras, a empurrara para o interior do seu talento, libertando-a do absurdo da História e da sua contingência
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Praticamente ninguém se afoitava a ir mais longe do que o seu reflexo no espelho. Talvez tivessem sido assim desde o início dos tempos, superficiais, escapando a mergulhar na vida pelo pavor de antecipar a morte. O homem sensato matará metade de si para poder viver durante mais tempo - era este o fundamento de todas as culturas, o preceito central de todas as religiões.
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A arte exige corpo e alma, pensamento e emoção, liberdade e obsessão. Exige o dom da metamorfose e um alto grau de domínio perante a dor. O artista, como o amante, tem de ser capaz de sair da sua própria pele para se colocar dentro da pele do outro. Esvaziando-se na entrega, ganha também imunidade à dor - há sempre um lado que contempla, de fora, a obra que dentro de si se está gerando. O artista sente-se um surpreendido Deus. O sopro da divindade, ou dessa iluminação súbita que a ela se assemelha, surge no ser humano por intermitências, frágil chama sobre corpos tocados pela vulnerabilidade do conhecimento antecipado da morte. Pode então suceder que o amante se encontre sufocado na rede de um amor desprezado, sem conseguir extrair desse amor mais do que raiva. Ou sofrimento.
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Gostou tanto da luz das velas, do silêncio ritual, do dedilhar da guitarra e do vinho como da canção propriamente dita. Gerou-se uma festa instantânea entre Rosa e Farimah, uma daquelas coisas de pele que apenas se referem nas relações de amor mas que constituem o lume inicial das grandes amizades; as paixões platónicas possuem também a sua lascívia.
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Gostava de livros; ultrapassara todas as crises da sua vida com um livro debaixo do braço. Na dúvida, lia. Quando alguém o provocava, abria um livro e ignorava a provocação.
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As palavras ficam sempre aquém da dor.
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Todavia, trazia o pai por todo o lado, como agora a mãe, depois de morta.
- O dom da ubiquidade existe. Há pessoas que têm o poder de materializar a sua imagem num sítio onde não estão.
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Na verdade, afeiçoamos o passado ao molde dos medos do presente; os olhares puros não têm data, sobrevivem ao cinismo contemporâneo como à maldade lisa que supomos ser sua avó. E o desejo é uma questão de cheiro e de pele, coisa animal que transcende a elaboração das transcendências. Farimah e Mandela amaram-se como estranhos e iguais, porque são essas as matérias do amor, relâmpago que tudo abre.
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Rosa procurava o pai porque precisava de saber de onde vinha para saber para onde queria ir. (...)
- Queres a segurança mínima do teu espelho original. Ser completamente livre é impossível, pesa demasiado. Eu percebo-te.
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Olhava-me como se nunca acabasse de me ler. Os livros eram o seu ar, é isso que ele tem de melhor e de pior: o que se passa fora das páginas não interessa, não acontece verdadeiramente, especialmente quando acontece em precipício. As palavras protegem-nos da queda dentro dos precipícios dos livros. Desabam-nos e erguem-nos.
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Antes de entrar no palco da Casa de Portugal, Rosa descalçou-se. Precisava de chão. Estava exausta de procurar a terra no corpo dos outros. Não havia terra para lá das fronteiras da pele; cada pessoa era uma país, quando o conseguia ser. Ela sentia-se terra-de-ninguém, excepto quando as luzes se apagavam e a voz se erguia, no silêncio, cantando tudo o que não conseguia dizer nem chorar.
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Não valia a pena acrescentar que o ódio é ainda um tributo do amor, que o bem e o mal se embaraçam de tal modo que a partir de certo ponto não conseguem destrinçar-se.
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-Tudo dói. Cada palavra traz uma dor.
- E cada silêncio também.
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Isso a que chamamos a nossa vida não existe - é um enxame. O que distingue uma vida da outra é o murmúrio do sonho, a distância a que cada um se coloca dele, o modo de brincar aos abismos.
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As histórias não têm princípio nem fim; agarramo-las como náufragos em busca de calor e devolvem-nos uma vida distinta da que julgávamos viver.
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O que é a paixão senão um movimento de fuga ao tédio da existência e um recurso da vaidade?
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A vantagem de se chegar a um ponto de exaustão é que então só sobra a liberdade."
In: Dentro de Ti ver o Mar,
Inês Pedrosa.
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