fevereiro 28, 2010

Sidewalk

A estrada canta os teus passos com as farpas que caem do nosso segredo de seda nocturna, de cima para baixo como um tempo de abatimento se anuncia, anos revelados na força viril da invernia, jogados no chão dos apostadores quase sozinhos, quase nus. A solidão é uma nudez angulosa, que viola uma intimidade a escorrer rua abaixo - podia ser uma história através de uma metáfora ocasional mas as páginas consomem-se na própria escrita enlouquecida, turbilhão liquefeito na beira de um passeio por mim dentro. A estrada varrida pelo assobio surdo de um jogador encharcado de impaciência, estrada acima, noite dentro. Não é uma história. É uma janela que se abre de mais e é Inverno, já sabias disso quando me conheceste, quase.

The Logical Song

Whatever Works

fevereiro 27, 2010

O Espírito

8.
"Este envenenamento vai muito mais longe do que se pensa: encontrei o instinto teológico do orgulho em toda a parte onde hoje alguém se sente «idealista», em toda a parte onde, graças a uma origem mais alta, alguém se arroga o direito de olhar de cima a realidade, como se ela nos fosse estranha... O idealista, tal como o padre, tem todas as grandes ideias na mão (e não só na mão!) e brinca com elas desdenhosamente contra a «razão», os «sentidos», as «honras», o «bem-estar», a «ciência»; sente-se acima de tudo isso como se tudo isso mais não fosse do que forças perniciosas e sedutoras, por cima das quais o «espírito» plana numa pura reclusão: como se a humildade, a castidade, a pobreza, numa palavra, a santidade, não tivessem feito até ao presente muito mais mal à vida do que todas as coisas pavorosas, do que todos os vícios, quaisquer que eles sejam... O puro espírito é mentira. Enquanto o padre continuar a passar por ser uma espécie superior - o padre, esse negador, esse caluniador, esse envenenador da vida, por profissão - não há resposta para a pergunta: que é a verdade? (...)"
In: O Anti-Cristo, F. Nietzsche

A Piedade

"Há homens que nascem póstumos. (...)
Chama-se ao cristianismo religião da piedade. A piedade está em oposição com as afeições tónicas que elevam a energia do sentido vital: a piedade actua de forma depressiva. Perde-se a força quando se tem dó. Pela piedade aumenta-se e multiplica-se o desperdício de força que o sofrimento já por si traz à vida. O próprio sofrimento se torna contagioso pela piedade; em certos casos, a piedade pode acarretar um desperdício total de vitalidade e de energia; perda absurda quando comparada com a pequenez da causa. (...) Admitindo que se mede a piedade segundo o valor das reacções que habitualmente ela faz nascer, mais claramente ainda aparecerá o seu carácter de perigo vital. A piedade entrava, em suma, a lei da evolução, que é a da selecção. Ela tem compreensão para com aquilo que está maduro para desaparecer, defende-se em favor dos deserdados e dos condenados da vida. (...) Mas é preciso nunca esquecer que isso se fazia do ponto de vista duma filosofia que era niilista, que inscrevia na sua fronte a negação da vida. Schopenhauer tinha razão quando dizia: A vida é negada pela piedade, a piedade torna a vida ainda mais digna de ser negada - a piedade é a prática do niilismo. (...) Para proteger o instinto da vida, seria necessário, com efeito, procurar o meio de vibrar um golpe a uma acumulação da piedade, tão perigosa e tão doentia como a que é representada pelo caso de Schopenhauer. (...)"
In: o Anti-Cristo, Friedrich Nietzsche

fevereiro 25, 2010

fevereiro 23, 2010

fevereiro 19, 2010

fevereiro 17, 2010

fevereiro 13, 2010

No Rasto de Mim

A minha cabeça é uma circunferência desenhada no ocre da terra humana com a cinza da vida. Muitas vezes sento-me à margem do que vejo dentro de mim e sinto o chão descer ao fundo da verdade, escalada para dentro, poço de segredos rodeado de árvores de sombra, enormes como um verdadeiro testemunho de existência. O sol queima a fuga: anos recapitulados, horas dilatadas numa terra efervescente, há uma luz aguda em tudo o que é visto por dentro, cá dentro.
E é isso que observo: um lastro telúrico chega-me aos olhos vindo da memória mais funda, manifesta-se nessa inquietude recolhida à sombra de um corpo a vibrar, procurando, em silêncio. E eis que o mundo é aquilo que a história quer continuar, não sei sair desta clareira onde me fiz pedaço sempre incompleto. E procuro, marco o chão com as perguntas vindas do fundo dessa declaração de humanidade que é dividir-se entre o reflexo cristalino do que vem até aqui e o que o céu promete, lá em cima, paralelo de mistério e enquadramento. Somos assim, seremos sempre uma ponte imperfeita entre dois oceanos de verde denso, olhamos as fronteiras da nossa terra, do nosso corpo vivo e reconhecemos aí o sabor secreto de uma confissão tantas vezes repetida, evocação de chão ido mas somos impelidos a olhar mais longe: ninguém sobrevive com o passado, fantasia que nos inebria e consome, é preciso levantar a cabeça, respirar outros ares vindos com o fim de um mundo, limitado.
A minha cabeça é um homem dividido entre certezas sem corpo presente e um amanhã azul, nos meus olhos cabe inteira essa adivinhação aérea, infinita. Chão ou céu, passado ou futuro? Posso dizer que a carne humana é o volume que se gera pela vibração impossível desta oposição, radical, cravada na pele da aparição de um homem dentro de cada um. É aqui que cada um fala de segredos que carrega dentro de si, neste espaço de questões solitárias e pessoais abre-se o chão e julgamos trepar a essência num silvo de promessa. Nunca ninguém confessou que dói, que somos só fragilidade, o medo comprime-se na coragem de uma verticalidade que o supera a contar as horas pelas linhas da memória. Olhos como espelho de um território submetido, aberto como um livro que se devora pela certeza das palavras que ressoam na tremura da pontuação. Somos um ponto final em alguns capítulos, fugimos de consumir esse trilho numa luz que se supõe num mundo que não pára mas não explica. E se pudéssemos tocar o Céu?
O ocre da carne humana, a cinza de um suor íntimo e uns olhos-espelho. Ouve-se o rumor das árvores e o marejar das águas no topo da cabeça, encostada à parede de um anel. Sente-se o movimento intangível nesse circuito inevitável, viaja a pergunta entre a história e a adivinhação e talvez viver seja a única crença, a fé imperfeita, humana, prospectiva mas secretamente nostálgica. - É preciso levantar a cabeça e respirar, respirar.
Talvez o segredo seja o mesmo para todos e cada um. Fecha os olhos dentro de ti, deixa de ser um homem à procura do embrião, deixa que um verdadeiro testemunho de existência se erga pela força do sonho, nesse lugar até agora desaparecido, demora-te na descoberta dessa vontade de deixar entrar o improviso. Olha-te ao espelho que construíste dentro de ti. Vês chão ou céu? Vês a água de um rio estagnado ou a foz de um começo? Um dia vais ver que a água que a terra faz correr vai fazer dos teus olhos um corredor em que tudo cabe, à luz de uma questão surge um dia, outro, onde o céu desce devagar e te faz acordar com um sorriso estelar.

fevereiro 12, 2010

fevereiro 10, 2010