outubro 31, 2009

A Contracapa das Palavras

Não te sei dizer por palavras o que foi que se passou contigo, cá dentro. As palavras são sempre uma imitação da vida, aquela que a minha saliva quis adoçar e entregar ao teu beijo quente. A folha desliza em branco como as horas intermitentes batem no vidro da janela onde o teu reflexo espreita. E eu não sei jogar com as sombras, com os fantasmas que se insinuam perigosamente por entre as linhas do meu amor, da minha memória. Não te digo isto, confesso-o num monólogo noites dentro - cerro os olhos e tenho medo que a humidade do esquecimento leve com a manhã a razão da minha espera, da minha vida. O buraco da tua ausência é maior do que a esperança e o sentido das coisas passava pelo entendimento de duas mãos a subir uma longa rua. Aqui, na planície dos dias que correm, o céu parece que vai desabar inteiro sobre o chão raso de sonho. Como o Alentejo no Verão que me rasgava por dentro quando tu encostaste a tua serenidade ao meu peito e me levantaste em carinho pelo céu amarelo.
Não sou o mesmo desde que te conheci e também não sei voltar ao antes porque não te quero abandonar junto à reciclagem. Costumo ligar a velha aparelhagem e chamar a voz de alguém para calar a minha, pesada, banhada de suor mas não vale a pena. Tudo e todos falam de nós sem saberem, exactamente porque o amor estampa o teu retrato em todos os interstícios da realidade. Acabei prisioneiro dessa obsessão que é prazer e dor num balanço paradoxal. Abre-se a porta da carruagem do metro e sento-me. Olho em volta, esperando, e os meus olhos caem inteiros nos degraus da linguagem - De um "Encontro de Amor num País em Guerra" fala-me a senhora em frente, com a sua leitura solitária a caminho de casa. E ali estou eu e tu desenhados sob esse lume de Agosto alimentado pela respiração dos nossos segredos a meia voz. A tua boca cheia de promessas, o teu perfume a paz e a morte tão impossível num coração tão forte, tão cheio de verdade. Apeteceu-me chorar ali, quase em casa, quase a chegar ao destino e eu não li o livro. Não precisava, na embriaguez dos meus olhos vejo-te crescer, a melodia do teu riso a puxar o vagão para trás, a ecoar no túnel e o meu peito é um país em guerra, o teu país ainda. É isto que significa a saudade, vivermos de costas para o futuro aninhados junto a um conforto em reflexo numa janela que não se abre mais.
O tempo segue em frente como o último metro se derrete no escuro das horas mas eu não acompanho, mudo de direcção, perco-me a tentar chegar a casa. Onde fica? Próxima paragem e não saio, não cheguei nunca a "ser" nesta planície estéril atravessada por túneis de desalento e solidão. Hoje não há o teu melhor a amansar a minha angústia e a fazer-me liso, cheio. Desvio o olhar do vidro das lembranças e fixo-o no caminho em rede, as cores a sinalizar oportunidades. "- Há uma linha vermelha, ali o metro é uma máquina do tempo, sabia, é assim que o passageiro sente que o bilhete lhe valida a vida; Não me falou em "Encontro?"
Saio n' "Os Combatentes". Hoje não há lugar para "Heroísmo"(s).

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Autumn


O Bloco

"Um grupo de milionários alemães vai enviar uma petição ao governo propondo a criação de um imposto de 5% sobre a fortuna dos mais ricos durante dois anos. [carácter temporário] Dieter Lehmkuhl, o responsável pela proposta, diz que se os 2,2 milhões de alemães com mais de 500 mil euros pagarem mais impostos é possível arrecadar 100 mil milhões de euros para ajudar a recuperação económica do país." [objectivo]
In: Sábado 29.10-04.11.2009

- Questão: Mais uma vez, como defender a demagogia do Bloco sob a epígrafe "Perseguição aos Ricos?"
Moção aprovada na VI Convenção do Bloco:
(excertos)
. "Esta crise demonstrou ainda que a política de nacionalizações e de responsabilidade pública na economia, nas comunicações, nos transportes, no sistema financeiro, tal como o planeamento de recursos escassos para evitar a sua delapidação, são indispensáveis como resposta às dificuldades criadas pelo capitalismo real."
. "Esta é a hora de uma guerra social implacável do capital contra o trabalho e os direitos humanos. A esquerda socialista responde ao desafio do nosso tempo: analisar as características do capitalismo real para escolher uma estratégia clara que junte toda a força social e a aplique onde seja possível lutar e vencer."
. "Uma grande parte da produção mundial de bens de consumo foi já transferida para a China, mas não a de bens de equipamento, de que continua a ser importadora. Enquanto os EUA e a Alemanha dominarem a produção de máquinas pesadas, a sua supremacia tecnológica perdurará."
. "Quando se desenvolveu a Revolução Industrial, a burguesia portuguesa não se tornou concorrente nos mercados europeus. Com o atraso de uma geração na industrialização e sem nunca ter imposto uma reforma agrária modernizadora, a classe dominante criou a ditadura de Salazar."
. "Por isso mesmo, a esquerda socialista defende a apropriação pública das mais-valias criadas pela reclassificação das áreas rurais ou ecológicas e o fim do sistema dos PINs, em nome do combate à corrupção e especulação imobiliária."
. "Neste ano eleitoral de 2009, as organizações do BE deveriam desenvolver uma linha acção especifica junto do Movimento Associativo local, integrando também Clubes, Associações de Pais, IPSSs, etc."
. "Por outro lado, consumou-se o abandono pelo vereador Sá Fernandes do seu programa eleitoral e a sua assimilação prática ao PS, pelo que o Bloco deu essa aliança por terminada."
. "Nas autarquias o BE quer aumentar o número de eleitos, apresentando programas locais de uma campanha nacional. O Bloco apresentará as suas próprias candidaturas e não fará coligações com partidos de direita ou com o PS ou o PCP."
."O Bloco é e será a esquerda de confiança."

outubro 24, 2009

Sublinha-se

" (...) Mas o que mais admirava é que em torno das paredes, discriminando aquela multidão de fantasmas oriundos do seu país, datada dos idos anos 70, a mapeação era explícita. Uma coluna ainda estava encimada por uma epígrafe suave - Estes São os Que não Devemos Esquecer. Mas, numa outra, bem mais extensa, lia-se - Os Que não Podemos Perdoar. Numa terceira fila, jaziam em coluna horizontal, como heróis do excremento, votados à posição dos vermes, Os verdadeiramente Traidores. E finalmente uma longa lista, a maior, a que dava a volta à parede, englobava, de forma melancólica, Aqueles Que não Nos Traíram mas Nos Deixaram Sós. Nomes e factos alinhavam-se sob as suas figuras como destinos fechados. (...) Permanecer ali era entrar na memória proibida duma pessoa, aceder a seus escaninhos recônditos. Enfim, era como se entrasse dentro do coração secreto dum homem."
(...)
"Sim, confesso, por vezes bastava deitarmo-nos no chão, com os olhos fixos no horizonte da cidade, para que tudo quanto desejávamos acabasse por acontecer. Pela janela fechada contra o voo dos insectos, passavam as nossas silhuetas, deambulando. Por baixo de nós só havia escadas e a terra do quintal, podíamos andar e andar até ao infinito. Podíamos continuar à espera."
In: "O Jardim sem Limites", Lídia Jorge

outubro 22, 2009

Carimbo português

O turista emerge na esquina de um destino de Verão e pergunta: "Onde fica X?" Caminha, já sabe lá chegar. À medida que os seus passos riscam o chão da tarde ele marcha, interiormente, para trás. Ao deter-se à porta dos pormenores da paisagem ele vai apreciar o que vê numa comparação com a casa que o moldou. Aos olhos curiosos e irrequietos a aparição de uma cultura vem de um paralelo que as malhas afectivas traçam acima de qualquer distância, de qualquer luta. No êxtase do exótico, na plenitude de outros silêncios geográficos ele, turista apaixonado pelo mundo, é ainda e sempre português. Ele agarra a máquina, anota, toca e sente com uma urgência que só pode significar a pátria a chamar mais alto por cima do cosmopolitismo. Lá, ele será sempre um estrangeiro por ruas cujas sombras são uma abstracção desse concreto cenário que o fez ser homem, ser. Não, ele não rejeita a sedução do novo, ele precisa de conhecer mais para talvez encontrar respostas. Viajar é isso mesmo: um caminho para a sabedoria. "Onde fica X para quem vem de P?" ou "Onde fica P depois de X?" Para quem o vê deslizar pela tarde não há nada de muito peculiar, é um turista num país que se abre. Para o português é mais do que isso - no contraste que voluntariamente se procura agigantam-se os contornos desse berço que nos protege, que nos desgosta, que trazemos amarrado à carne. Para ele essa caminhada pela estrada da capital estrangeira é uma intervenção cirúrgica que se dá na transferência recíproca de ambientes, cheiros, quadros humanos. P não será visto da mesma forma depois da sobreposição que A confecciona num misto de emoção e razão porque as distâncias afiam sensibilidades. A dobra uma esquina como quem se decide a valorizar a pergunta como lema. Leva um mapa, leva um passaporte que lhe diz o caminho e que lhe permite também abrir a porta da curiosidade. Pega nele, toca-lhe, sentado numa escadaria martelada pelo tempo. Portugal está dentro de si e eis um pequeno espelho dessa ligação telúrica, apaixonada. "Anotação de entrada e saída." Sente sempre isto quando chama a si os confins do mundo: apesar da magia do novo, apesar da imensa energia que colhe além fronteiras, há um alarme que dispara e sinaliza no mapa a letra P como uma espécie de bússola tolerante que só se insinua depois que outros trilhos lhe completam as anotações. Apesar de tudo, A sente um grande alívio por não ter que perguntar "Onde fica P?" Caminha, sempre soube como regressar.

JOY is BMW

outubro 10, 2009

'De Profundis'

"(...) A minha relação com Deus tem sido sempre tumultuosa, cheia de desacordos e discussões: longos períodos em que me afasto, alturas em que me aproximo, amuos, quase insultos, discussões. Creio firmemente que, nos livros que escrevo, é Ele que guia a minha mão e não passo de um instrumento da Sua vontade. (...) É que não escrevo assim tão bem, trabalho sem plano e quase me limito a assistir ao que vai ficando no papel. (...) Não concordo com Jean Daniel, quando afirma que a única desculpa de Deus é não existir: há alturas em que o sinto tão fortemente em mim, alturas em que o sei tão longe. (...) Regressando ao princípio o meu pai teve um irmão que morreu pequenino, de meningite. Contou-me certa vez uma coisa que não esqueci nunca: era criança e tinha ido com o pai buscar os exames do irmão. Meningite tuberculosa, sentença de morte. Vieram para casa com o meu avô a guiar o automóvel, e o meu pai, sentado ao lado meu avô, via as lágrimas descerem pela cara impassível. Todos os dias, na esperança do filho se salvar, a minha avó ia a pé das portas de Benfica à capelinha da Senhora da Saúde, o que nessa época, e com o estado das ruas de Lisboa, exigia um esforço enorme. Depois dos meus avós morrerem as minhas tias encontraram toda a roupa do irmão guardada num armário: não foram capazes de se desfazer dela, não quiseram desfazer-se dela. Já nenhuma das pessoas de que falei se encontra neste mundo: os meus avós, o meu pai, as minhas tias, Sobro eu e, em certo sentido, enquanto cá estiver eles continuam. Para quem pensam que escreve o imbecil desamparado? Para as lágrimas de um homem pela agonia do filho, para uma mulher a caminhar diariamente quilómetros na esperança de que Deus o curasse. No jazigo dos meus avós lê-se
Ao nosso Antoninho
e, de vez em quando, vou lá às escondidas. Podem pensar na minha cretinice, não me rala, sinto-me bem junto deles. Os meus livros são isso: as lágrimas daquele homem, os passos daquela mulher. No caso de se aproximarem mais das páginas é o que realmente verão, em lugar das palavras impressas. E talvez vejam também o cretino a espreitar, comovido, pelas grades da porta."
António Lobo Antunes

'Talk Show'*

"Aos 20 anos, o amor é um transplante; aos 50 anos, o amor é uma confusão; aos 70 anos, se existir amor, é uma evidência, é bonomia e uma enorme tranquilidade."
Rui Horta, Actual, Expresso, 10.10.2009.
*"Talk Show é a primeira de três peças que o coreógrafo (Rui Horta) vai criar este ano para o Centro Cultural de Belém (de 15 a 18 de Outubro) enquanto artista associado daquele espaço."

outubro 03, 2009

Croácia 2008




"Sim, andámos a guardar a energia da noite, a receber a luz da escuridão das ruas, a recolher o halo amarelo das lâmpadas penduradas nas hastes. Debaixo delas, a sombra de cada um multiplicava-se por quatro e por várias, como se cada corpo fosse o núcleo de uma encruzilhada de sombras."
In: "O Jardim sem Limites", Lídia Jorge

outubro 02, 2009

Freezing

'If you had no name

If you had no history

If you have no books

If you had no family

If it were only you

Naked on the grass

Who would you be then?'

outubro 01, 2009

Black&White

A preto e branco,
a imagem. Parece que nasce com uma fisionomia definida, estanque. Ao olhar para o mundo desfeito em pequenos fragmentos de memória visual parece-me mais romântica, mais suportável a ideia de que tudo perece, finda. - Ao ver-te no círculo do teu tempo aceito melhor e o incêndio da saudade não reclama maior indemnização à história. A preto e branco parecemos todos conciliados mercê da protecção cromática, quem sabe. É como se o teu sorriso de há 40 anos não se importasse nada de continuar lá, em 1969, e vivesse à roda dentro da moldura, satisfeito, contido. E eu? Os meus olhos nadam neste mar nublado de testemunhos virados para dentro e dói menos saber-te desse lado da estória e do tempo. Quem diria que a objectiva tinha ponteiros, hein? De qualquer forma, é melhor assim. Há uma vitalidade apaziguada nestas imagens e percebo-te mais resistente ao toque da curiosidade na ponta dos dedos, posso-te respirar sem medo de roubar a cor das horas passadas. A preto e branco, o teu rosto fica maior, os pormenores de uma beleza focada, numa fisionomia definida. Estas fotos são o melhor tempero para a saudade e tu sabias disso. Por isso sorris.

Na minha Rolleiflex

As fotografias em cima da mesa. Abre-se o leque e estás lá. Dobras-te num rendilhado de lugares, horas, sons, cheiros para caberes inteira nesse movimento automático. Para lá e para cá. Repito a visita às imagens e descubro-me preso nos detalhes - há uma interpretação toda ela feita nessas linhas que expressam o que fomos, o que somos. Gosto delas, as fotos, a preto e branco mas nunca te disse o porquê. Gosto que as coisas durem. As fotografias assim tiradas oferecem-nos a fantasia da eternidade, de que um sorriso numa tarde de Verão pode fugir da noite como uma criança verdadeiramente livre foge do medo. A tua boca, os teus lábios sob o meu dedo apaixonado num talento imutável.
Quando os nomes se tornam tão pequenos para declarar as coisas que o nosso amor tocou. Quando o teu nome se liga irremediavelmente à minha vida que eu não sei partir para o mundo sem ser já cego para o facto de que houve um antes, de que há uma certa evidência de finitude e transitoriedade. Não é esse o lugar do Amor - ele continua a ondular em torno daquela velha árvore e a alimentar-se da seiva das palavras que são ponte entre duas linhas paralelas. Afinal, elas sempre se encontram sem plano. A máquina ao serviço da vida.
O amor torna a realidade ficção. Eu estou ali contigo, dentro desse casulo que é a fotografia que se abre para trás, sentimental afirmação da passagem do tempo."- Sabes, gosto das fotos a preto e branco." Gosto do sabor que o teu nome empresta à minha boca, à minha língua. A que te nomeia e que empurra os olhos para essa espiral de cor, intangível.
Clic. Há uma porta que separa dois mundos: aquele em que nos demoramos com as tonalidades de um céu reverberante e um outro que observa mais ou menos atento o que parece ser a nossa história. "- Sabes, os outros não usam a nossa linguagem, não são a nossa voz."
Quando me demoro com as imagens no colo ainda sou o mesmo daquele dia, o que quis guardar mais fundo todos os pormenores desse instantâneo que a máquina, rendida, encaixilha. Descubro-me nos detalhes desse sorriso imortal e sei o que fui para me tornar no que sou. Essa foto a preto e branco é um sinal e eu corro como uma criança no rasto do sonho, para dentro do horizonte. "- Sabes, a máquina fala de nós e não por nós, só nos lembra que há mais caminho cá dentro."
O que se encontra mais além, mais fundo. As cores da vida são o outro lado das imagens. Vamos lá.